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Projetos de lei podem aumentar o desmate de áreas de preservação permanente

por InfoAmazonia

Propostas permitem desmatamento e obras em cursos de rios e córregos para irrigar lavouras e matar a sede de animais de criação. Mudanças podem aumentar seca já histórica e gerar prejuízos ao país.


Alterada há nove anos, a legislação florestal brasileira está na mira de projetos de lei que permitem o desmatamento e obras em cursos d’água. Três propostas tramitando na Câmara tornam de utilidade pública o represamento de rios e córregos para a irrigação de lavouras e para matar a sede de animais de criação em imóveis privados. Um dos textos tramita em regime de urgência.

Conforme análise de entidades civis, os projetos de lei 2.294/2019, 2673/2021 e 2168/2021 ampliam a derrubada de matas e florestas, podem prejudicar a geração de energia e aumentar a escassez e os conflitos pela água, reduzindo o recurso para quem está abaixo dos barramentos.

“Esses projetos são retrocessos à proteção da vegetação nativa que não conseguiram passar em 2012. A Bancada Ruralista tramita suas pautas prioritárias em diferentes comissões com textos semelhantes e, muitas vezes, simultaneamente na Câmara e no Senado”, resume Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA). Isso dificulta o acompanhamento e o debate de projetos por entidades ambientalistas.

O chamado novo Código Florestal foi publicado em 2012 e chancelado seis anos depois pelo Supremo Tribunal Federal. O texto anistiou a recuperação, antes exigida em lei, de 410 mil km² de hectares em Áreas de Preservação Permanente (APPs) e de Reservas Legais (RLs) desmatadas até 2008 em terras privadas. A área anistiada equivale a do Paraguai ou a duas vezes a do estado do Paraná.

Pela legislação atual, a vegetação das APPs deve ser preservada em encostas e topos de morros, nas margens de nascentes, córregos e rios. As faixas variam de 30 a 500 metros, conforme a largura do curso d’água. As RLs são percentuais mínimos de mata a serem mantidos em imóveis rurais, de 80% na Amazônia, 35% entre a floresta e o Cerrado, e 20% no restante do país.

Um estudo publicado em 2019 na revista Perspectives in Ecology and Conservation estimou que manter a vegetação nativa em propriedades rurais (incluindo APPs e RLs) rende R$ 6 trilhões anuais ao país em polinização, controle de pragas, abastecimento de água, produção de chuvas e manutenção de solos. Seu desmatamento pode piorar esses fatores, alterando o clima e o regime de chuvas. O cálculo foi feito com base numa estimativa média mundial, que quantificou os serviços ecossistêmicos de um hectare de floresta tropical, que rende cerca de US$ 5.382 (R$ 21.000) por hectare anualmente.

Um estudo estimou que manter a vegetação nativa em propriedades rurais (incluindo APPs e RLs) rende R$ 6 trilhões anuais ao país em polinização, controle de pragas, abastecimento de água, produção de chuvas e manutenção de solos.

Uma das propostas, o PL 2673, do deputado federal Zé Vítor (PL-MG), pode ser votada no plenário da Câmara em regime de urgência. O parlamentar defende pautas do Triângulo Mineiro, região afetada pela seca. Análise da Universidade Federal de Uberlândia mostrou que havia apenas 2,4% da vegetação original na região, em 2003. Para justificar o projeto, o deputado diz que o foco é a desburocratização das licenças. “É notória a demora dos órgãos ambientais em conceder a licença ambiental para a construção de barragens para as atividades agropecuárias. Assim, é urgente a aprovação de políticas públicas voltadas a desburocratizar a produção de alimentos”, destacou o parlamentar.

Ameaça também em zonas urbanas

A secretária-executiva do Observatório do Código Florestal, Roberta del Giudice, destaca que a vegetação nas margens de córregos e rios urbanos também está ameaçada. A Câmara aprovou em agosto um projeto para que a ocupação dessas APPs seja definida por cada município. Segundo ela, a proposta tem potencial para ampliar invasões e desmatamento em áreas de interesse comum das populações que vivem nas cidades.

“O texto regulariza ocupações e desmatamentos nesses locais até abril de 2021 e permite que os municípios definam faixas de APPs como bem quiserem. A proposta também não aborda melhorias na situação de populações carentes, que costumam habitar estes locais, servindo especialmente para passar uma borracha nas irregularidades de quem tem poder econômico”, avaliou.

Enfrentamos um ambiente político onde tudo pode ser aprovado. Isso é provocado por uma mentalidade imediatista, que não pesa fatos históricos nem o conhecimento científico sobre as crises do abastecimento de água e do clima.

Roberta del Giudice, do Observatório do Código Florestal

Em abril deste ano, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a recuperação da vegetação em APPs urbanas deve respeitar as regras da legislação florestal nacional e não as estipuladas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, que pede apenas 15 metros com vegetação nativa preservada nas margens de rios e córregos. A decisão pode ser derrubada se a lei federal das APPs em áreas urbanas for alterada no Congresso.

Outro projeto em análise na Câmara, o PL 4648, altera o conceito de “área rural consolidada” na legislação florestal. Essa mudança, na visão das entidades ouvidas pelo InfoAmazonia, anistia até 2028 o desmatamento e outros crimes ambientais cometidos em APPs e RLs. A medida também abriria a porteira para mais desmatamentos em todos os biomas.

“Enfrentamos um ambiente político onde tudo pode ser aprovado. Isso é provocado por uma mentalidade imediatista, que não pesa fatos históricos nem o conhecimento científico sobre as crises do abastecimento de água e do clima. Aprovar esses projetos prejudicará populações rurais e urbanas, a produção no campo e os mercados nacionais e internacionais do agronegócio”, ressaltou Roberta del Giudice.

Nas nascentes do rio Piauí, afluente da margem esquerda do Velho Chico em seu trecho baixo. Foto: Carlos E. Ribeiro/InfoSãoFrancisco.

Enquanto a “boiada” pisoteia a proteção da vegetação nativa no Congresso, pontos estratégicos da legislação florestal ainda não foram implantados. Um balanço de dezembro passado da Climate Policy Initiative (CPI) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro apontou que “passados oito anos de sua promulgação, o Código Florestal está longe de ser efetivamente implementado em todos os estados brasileiros”. A análise e a validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) pelos estados são alguns dos principais gargalos, inclusive para a restauração florestal.

Exigência da legislação federal, a recuperação de aproximadamente 25 milhões de hectares de matas por governos e setor privado até 2030 também engatinha. Incentivos econômicos e fiscais para a aplicação da lei ainda não foram definidos em grande escala e no longo prazo. O Plano Safra 2020/2021 aumenta o limite de crédito em 10% para produtores rurais com CAR válido.

“A regulamentação do Código Florestal depende das prioridades da Frente Parlamentar do Agronegócio. Muitos outros projetos com retrocessos podem entrar em pauta e, como os ruralistas têm maioria no Congresso, seguirem direto ao plenário, sem audiências públicas e sem debate com a sociedade. É um cenário de grande risco para o campo socioambiental”, ressaltou Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental (ISA).


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Fontes

InfoAmazonia