por Isadora Oliveira via Revista Manuelzão

Um alerta de emergência hídrica reforça um questionamento que ambientalistas fazem há anos, o que sacrificamos com nossas escolhas de gestão e consumo de água?


A história de trocas entre um dos principais rios de Minas Gerais, o Velhas, e os povoados de suas margens remonta há pelo menos 12 mil anos. Foi quando os contemporâneos do fóssil mais antigo da América Latina, encontrado em Pedro Leopoldo, e que pertenceu a uma mulher apelidada posteriormente como Luzia, usaram como abrigo as grutas da região próxima aos atuais limites de Confi ns e Lagoa Santa.

Milhares de anos depois, a ação dos bandeirantes de Fernão Dias originou povoados como a Vila Real de Sabará e diversos outros que acompanham o curso do rio das Velhas.

A sub-bacia hidrográfica do rio das Velhas, na bacia hidrográfica do rio São Francisco. Reprodução: CBH Velhas.

Desde que a primeira pepita de ouro foi encontrada, em 1677, entre Sabará e Lagoa Santa, a mineração é a principal causa das mudanças na paisagem, seja pelo desmatamento e poluição ou pelos adensamentos populacionais. Pode-se dizer que pouco dessa influência se alterou desde então. O Velhas convive hoje com o risco de rompimento de sete barragens da Vale, três delas em nível máximo de alerta, localizadas na região do Alto rio das Velhas, onde estão localizadas suas nascentes.

Além disso, após o rompimento da barragem da Vale no Córrego do Feijão, em Brumadinho, que praticamente inutilizou o rio Paraopeba para o abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o Velhas, principal responsável pelas águas da RMBH, ficou ainda mais sobrecarregado.
Além da ameaça dos rompimentos, essa pressão tem aumentado os riscos à saúde da bacia.

ALERTA HÍDRICO

O Sistema Nacional de Meteorologia emitiu, no fim de maio, um alerta de emergência hídrica associado à escassez de chuvas para a região hidrográfi ca da Bacia do Paraná, que abrange o Sudeste e o Centro-sul do país, para o período de junho a setembro de 2021. A falta de precipitações afeta os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná.

O estudo revelou ainda, em uma análise retroativa, que as baixas nos índices de precipitação são alarmantes desde 2019. O volume de chuvas entre setembro de 2020 e março deste ano é o menor em 91 anos. Os baixos índices de precipitação afetam não somente a economia e os bolsos dos consumidores com contas de luz altas, mas também a segurança alimentar, a vida das populações ribeirinhas, o ofício de pescadores e o balanço ecológico das bacias.

De acordo com o geógrafo e presidente da Câmara Técnica de Outorga e Cobrança (CTOC) do Comitê de Bacia Hidrográfi ca do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), Rodrigo Lemos, existem fenômenos climáticos influenciando o cenário que são de uma escala que ultrapassa a local, mas precisamos pensar também nas formas de uso e ocupação de cada território.

Renato Lopes/Flickr
O encontro do rio das Velhas com o São Francisco.

Segundo o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2010, a população da bacia do Velhas é estimada em 4,4 milhões de habitantes e está distribuída nos 51 municípios cortados pelo rio e seus afluentes.
A RMBH ocupa cerca de 10% desse território, mas retira mais de 70% da sua vazão. Somente o sistema de Bela Fama, em Nova Lima, é responsável pelo abastecimento de 1,8 milhão de pessoas.

Durante o período de estiagem em 2019, o Sistema Bela Fama atingiu a vazão de 8 m³/s, a pior da história. Atualmente, o valor está na casa dos 11 m³/s, pouco acima da vazão considerada de alerta, de 10,4 m³/s. Somente a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) retira 7,6 m³/s da vazão disponível.

“É necessário refletirmos sobre quais políticas e ações estamos tentando construir para evitar que a escassez se torne um problema para as atividades humanas e para os sistemas ecológicos. A escassez faz parte do processo do ciclo hidrológico, já a menor oferta de água é um problema das nossas estruturas de gestão”, explica Lemos.
Na visão do geógrafo, a falta de um planejamento que seja sensível às águas e aos seus ciclos de recarga e renovação nos deixa cada vez mais longe de garantir um planejamento integrado em torno das dinâmicas dos mananciais.

MITIGAR AS PERDAS

Para o coordenador do Projeto Manuelzão, Marcus Vinícius Polignano, o alerta de escassez é uma oportunidade para entendermos que a água é renovável, mas não é inesgotável: “não adianta pensar que teremos água sem cuidar do solo”. Polignano destaca que manter as cidades permeáveis, com um desenvolvimento que obedeça a reserva de 20% dos terrenos para absorção das chuvas, e ampliar a infraestrutura verde é fundamental para se manter a resiliência do solo e dos mananciais.

Enquanto isso não se concretiza, as cidades assistem a enchentes quando o sistema hídrico se reabastece, nos períodos chuvosos, mas perdem todo esse volume de águas sem as devidas absorção e captação.

Polignano também ressalta a urgência de se reduzir as perdas ocorridas no abastecimento que, no caso da Copasa, chegam a cerca de 40% do total de água captado.

IMPACTOS DA MINERAÇÃO

As zonas de recarga de aquíferos são locais da superfície terrestre que possibilitam a infiltração da água em direção ao sistema geológico, capaz de armazenar e distribuir o recurso.

O topo dos morros é de fundamental importância para a recarga, já que seus fluxos verticais descendentes são temporalmente mais longos, promovendo o armazenamento de água durante todo o ano, distribuindo-a superficial e subterraneamente por toda a bacia.

A expansão minerária no Alto rio das Velhas a partir da década de 1990 tem intensificado os impactos negativos nos mananciais e reservatórios da bacia. Com a exploração dos morros e serras, compromete-se o processo de recarga e renovação, e a qualidade da água. A transferência entre águas superficiais e subterrâneas é reduzida e, com isso, os mananciais perdem a capacidade de manter sua vazão; o sistema hídrico perde resiliência.

“Temos cerca de apenas 50 dias chuvosos em um ano, o que indica que é esse sensível sistema de produção de água que mantém sua autoalimentação no restante do tempo”, aponta Polignano.

“É como um sistema circulatório”, compara o professor, “a calha do rio é uma consequência de todas as nascentes do entorno”, e este sistema está totalmente conectado à capacidade de manutenção das suas caixas subterrâneas. Com algumas veias sendo sacrificadas, o sistema vai adoecendo.

DA ANÁLISE CRÍTICA

Os dados meteorológicos vêm demonstrando que, ciclicamente, fenômenos de escassez de chuvas vêm se repetindo em prazos muito curtos, a cada 4 ou 5 anos. Tratam-se de eventos próximos e sistêmicos, que denotam eventos planetários ligadas às mudanças climáticas.

Além disso, a gama de informações hoje disponível permite realizar simulações e previsões meteorológicas de médio e longo prazo. Portanto, tratam-se de fenômenos previsíveis. Não podemos ser surpreendidos.

Temos um cenário complexo envolvendo diversas crises, que se somam e se potencializam – a energética, a ambiental e a hídrica – e que têm em comum a ausência de uma política sistêmica centrada na gestão das bacias hidrográficas.

“Não basta chover, é preciso que a água se acumule no solo. É necessário um solo geologicamente permeável, com matas e áreas de recargas preservadas, com nascentes vivas. Enfim, é preciso que haja um sistema de produção natural de água!”, finaliza Polignano.


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Fontes

Projeto Manuelzão – Revista Manuelzão 89