por Eduardo Geraque | Revista Pesquisa FAPESP
Areias do rio São Francisco carregadas pelos ventos deram origem e forma às dunas de Xique-Xique, na Bahia, nos últimos 100 mil anos.
A história geológica mais recente de um trecho de 200 quilômetros (km) do médio rio São Francisco, no norte da Bahia, e de uma de suas formações naturais mais marcantes, as grandes dunas da região de Xique-Xique ao longo de suas margens, ilustra a capacidade transformadora dos ventos no interior do semiárido e do vaivém das águas do mais importante rio que corta o Nordeste. Segundo um novo trabalho científico, a paisagem local foi moldada nos últimos 100 mil anos por uma sucessão de fases marcadas por deposição fluvial (transporte de sedimentos para o leito do São Francisco) entremeadas por momentos dominados por processos erosivos. “A alternância desses ciclos se deveu provavelmente à variação milenar das chuvas nas nascentes do São Francisco, e não especificamente à pluviosidade nesse trecho do rio”, explica a geóloga Patricia Mescolotti, principal autora do estudo, publicado em meados de 2021 no periódico científico Quaternary Science Reviews. A geóloga defendeu tese de doutorado sobre o tema no ano passado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro.
As cabeceiras do São Francisco se situam a cerca de 1.500 km da área de Xique-Xique, na parte alta da bacia hidrográfica, no sudoeste de Minas Gerais. A partir dessa área, o rio percorre 2.700 km em direção ao Nordeste até desaguar no oceano Atlântico, na divisa entre Sergipe e Alagoas. De acordo com o estudo, nos períodos em que chovia em excesso nas nascentes, o volume de água que passava pelo antigo leito do São Francisco aumentava consideravelmente. O eventual transbordamento do rio intensificava a deposição de sedimentos que se tornavam disponíveis para a formação das dunas de Xique-Xique, que ocupam 8 mil quilômetros quadrados (km2), área equivalente à Região Metropolitana de São Paulo.
Grandes rios resultam sempre de processos complexos e dinâmicos. Sua evolução está atrelada a forças globais e locais, como movimentos tectônicos, variações climáticas e do nível do mar. No caso do trecho do médio do São Francisco, longe do oceano e praticamente isento de terremotos significativos, as mudanças no regime de chuvas do passado, ainda que em um ponto distante da bacia hidrográfica, parecem ter sido determinantes para criar a dinâmica de deposição de sedimentos e de erosão. O principal mecanismo climático que regula o regime de chuvas de verão no Sudeste e no sul do Nordeste – portanto, em setores que antecedem o trecho do São Francisco em Xique-Xique e fornecem água para os pontos mais baixos da bacia – é a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS). Esse sistema meteorológico é formado por um conjunto de nuvens orientado no sentido noroeste-sudeste que cruza o litoral brasileiro entre o sul da Bahia e São Paulo. De acordo com sua movimentação, a ZCAS estimula mais ou menos chuvas nas nascentes do São Francisco, no Sudeste.
SRTM / ALOS-PAlSAR / Landsat Imagem de satélite das dunas de Xique-Xique (áreas em cinza mais claro) às margens do São Francisco (trechos em verde)SRTM / ALOS-PAlSAR / Landsat
De acordo com o geólogo Mário Assine, da Unesp, orientador de Mescolotti e coordenador da equipe que produziu o estudo, a dinâmica dos níveis pluviométricos registrados especificamente na área de Xique-Xique, no médio São Francisco, ao longo dos últimos 100 mil anos, foi insuficiente para explicar as diferentes feições que o rio e as dunas adquiriram. “Como não conseguimos uma boa associação entre o regime de chuvas local e a paisagem, decidimos olhar para mecanismos climáticos mais amplos”, comenta Assine. Foi assim que descobriram a associação entre mais chuvas nas cabeceiras do rio, em razão da ZCAS, e os ciclos de deposição e de erosão em Xique-Xique.
Os pesquisadores identificaram quatro fases bem demarcadas de deposição fluvial no trecho do São Francisco estudado: há mais de 90 mil anos; entre 65 mil e 39 mil anos atrás; entre 18 mil e 9,5 mil anos; e durante os últimos 380 anos. Os ciclos de processos erosivos predominaram em três períodos: entre 85 mil e 65 mil anos atrás; entre 39 mil e 18 mil anos; e entre 9,5 mil e mil anos. Eles também interpretaram que o São Francisco não tinha então a mesma forma atual. Seu leito já foi muito mais largo e cheio de meandros. Para montar esse quebra-cabeça de deposições e erosões que moldou a paisagem desse segmento do Velho Chico e de seu entorno, Assine, Mescolotti e colaboradores se valeram de uma gama de ferramentas analíticas, como imagens de sensoriamento remoto por satélite e levantamentos de campo para colher e estudar amostras geológicas.
Pela primeira vez, sedimentos do médio São Francisco foram datados por uma técnica moderna, a luminescência opticamente estimulada. “Na prática, esse método permite saber quando foi a última vez que um grão de areia ‘viu’ o sol, antes de ter sido soterrado nos processos de formação das dunas”, explica o geólogo Francisco William da Cruz Júnior, da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do trabalho, mas conhece em detalhes a geomorfologia da região estudada e os processos climáticos que a influenciaram ao longo de milhares de anos.
As datações sugerem que os dois eventos que mais contribuíram para a formação das dunas ocorreram bem depois, entre 23 mil e 18 mil anos atrás e entre 15 mil e 10 mil anos. A fase de consolidação dos montes de areia se deu em períodos mais úmidos, quando havia mais vegetação em toda a região. Conforme também indicam os registros sedimentares, o processo mais recente de estabilização dessas formações arenosas no norte da Bahia teve início há 5 mil anos e se estende até hoje. “As dunas de Xique-Xique são o maior campo eólico continental do Brasil”, comenta Mescolotti. “Por isso, queríamos entender como foi seu processo de formação e sua interação com a dinâmica do rio São Francisco.”
Artigo científico
MESCOLOTTI, P. C. et al. Fluvial aggradation and incision in the Brazilian tropical semi-arid: Climate-controlled landscape evolution of the Sao Francisco River. Quaternary Science Reviews. 15 mai. 2021.
Fontes: Revista Pesquisa FAPESP
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