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MapSãoFrancisco: por uma cartografia colaborativa e inclusiva para o Velho Chico

por Redação

Canoa de Tolda e InfoSãoFrancisco criam iniciativa que propõe mapeamentos colaborativos e inclusivos na bacia hidrográfica do rio São Francisco: uma contrapartida ao “vazio cartográfico” que não contempla pessoas, lugares, situações e quadros de extrema vulnerabilidade e/ou injustiça socioambiental.


As pessoas que vivem nos diferentes lugares da bacia hidrográfica do rio São Francisco se depararam diariamente com uma situação: não encontrar seu povoado, seu território e seus lugares de vivências.

As lagoas onde, quando menina, ou menino, de junto de seus pais ou avós, plantava arroz, pescava peixe, camarão. “Mas, como pode um vazio, se eu estou aqui, no povoado onde nasci, me criei, e no mapa não tem nada?”. Essa, normalmente, é a primeira reação dos habitantes de regiões diversas em todo o Brasil, o que pode ser aplicado, sem problemas, ao território do Velho Chico.

Mapas oficiais, mapas comerciais: representariam, de fato a realidade local?

Não há uma resposta única para tal realidade onde, apesar das mais avançadas tecnologias de mapeamento disponíveis e segundo dados do HOT – Humanitarian OpenStreetMap Team, temos aproximadamente um bilhão de pessoas na face da terra vivendo fora do mapa, às quais não são garantidos inúmeros direitos humanos básicos.
Ainda assim, podemos elencar algumas constatações nas principais fontes de mapas que nos interessam: os mapas oficiais e os mapas chamados de comerciais.

Figura 01 – Locais existentes, com pessoas que ali vivem, às margens do Velho Chico. Reprodução: Google Earth
Figura 02 – O mesmo local representado na figura 01, extrato de um mapa do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2021. “Vazios” no mapa e representações inconsistentes, vagas, erros de português na toponímia, situações que não contribuem para a boa informação, . Reprodução: IBGE

Nos mapas oficiais (aqueles produzidos pelos governos dos municípios, estados e federal), a representação de grupos humanos ou áreas naturais está sujeita à prioridades estabelecidas por governos que, não necessariamente, têm políticas públicas de estado efetivamente participativas, inclusivas, consolidadoras de um democrático projeto de nação a longo prazo.

Nesse caso, mapas podem ser influenciados por uma determinada ideologia ou por algum interesse à margem do coletivo difuso que, indevidamente, compromete a elaboração e aplicação de políticas públicas de identificação e reconhecimento de grupos humanos vulneráveis e também zonas de território em situação de possível risco (e que afetariam direta e indiretamente populações humanas e ecossistemas).

Na cartografia aplicada à bacia do Velho Chico o que temos não é diferente: imensos vazios em todas as regiões fisiográficas impondo situações indignas de injustiça às populações mais pobres e desassistidas do território.

Figura 03 – A mesma região das figuras anteriores, segundo um mapa comercial, do Google. Reprodução: Google Maps

Quanto aos mapas comerciais, pertencentes a empresas que desempenham suas atividades com objetivos do lucro que, através de seus produtos, vendem dados e publicidade. Para esse segmento sua forma de atuação é muito clara: o mapeamento de zonas inóspitas, pobres e vulneráveis não é interessante pois pertencem às regiões onde não haveria o público alvo daquelas empresas, o que possibilitaria o esperado retorno financeiro.

Mapeando o São Francisco, em contraposição ao vazio cartográfico

Para suprir a precária informação cartográfica na bacia hidrográfica do rio São Francisco, a Canoa de Tolda e o InfoSãoFrancisco criaram o MapSãoFrancisco que irá, através de cooperações nas diversas regiões fisiográficas da bacia, realizar projetos de mapeamento colaborativo.

O MapSãoFrancisco é possível graças à cooperação com o HOT – Humanitarian OpenStreetMap Team, organização mundial que é referência mundial em projetos de mapeamento coletivo em todos os continentes. As iniciativas do HOT são utilizadas por organismos tais como a ONU – Organização as Nações Unidas, Cruz Vermelha Internacional e o Banco Mundial, além de órgãos governamentais de diversos países.

Figura 04 – O processo de mapeamento de uma lagoa marginal no Baixo São Francisco através da plataforma OpenStreetMap em atividade do MapSãoFrancisco.

A cooperação com o HOT possibilita o acesso à ferramental, sistemas e treinamentos desenvolvidos especificamente para projetos de mapeamento colaborativo, que será realizado com a utilização do OpenStreetMap, plataforma aberta, pública, com acesso livre e gratuito.

Também apoia o desenvolvimento e aplicação do MapSãoFrancisco na região fisiográfica do Baixo São Francisco a UFAL – Universidade Federal de Alagoas, através de seu curso de Engenharia de Pesca, em Penedo, Alagoas.

Figura 05 – A plataforma SIGA, do CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, não produz elementos para a base cartográfica, apenas reproduz dados de terceiros, como no caso, da ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. As lagoas marginais componentes do mapa, na região, foram produzidas pelo MapSãoFrancisco a partir da publicação no OpenStreetMap. Reprodução: SIGA/CBHSF

A concretização do MapSãoFrancisco tem, no entanto, raízes bem antigas, fundamentadas na necessidade natural de representação das reais ocupações e dos usos ao longo do trecho baixo do rio São Francisco.

Baixo São Francisco; uma região quase sem cobertura cartográfica

“Em 1998, quando começamos nossas atividades no Baixo São Francisco, nossa primeira atividade foi o Projeto Margens de mapeamento de populações difusas, uma vez que as informações cartográficas da região eram muito precárias. Foi um mutirão de vários dias de mapeamento voluntário e colaborativo de pequenas comunidades ribeirinhas nos altos sertões de Alagoas e Sergipe.”, relembra Carlos Eduardo Ribeiro Jr., um dos fundadores da Canoa de Tolda.

Sem contar com o ferramental disponível na atualidade, continua Carlos Eduardo, “foi utilizada a metodologia empregada pelos históricos agentes da SUCAM, que percorriam o Brasil nas campanhas de vacinação com seus belos e extremamente precisos croquis das áreas de interesse. Seguindo o exemplo, desenhamos croquis de localidades, povoados, mapeando todas as residências e criando fichas específicas e interligadas dos povoados, das casas e de cada morador, montando talvez o primeiro banco de dados de como as pessoas viviam em tais locais. Essa iniciativa nos permitiu estabelecer um programa básico de ações para o futuro, sabendo por onde e como aplicá-las”.

Figura 06 – Representação física de Alagoas e Sergipe onde corpos hídricos essenciais como lagoas e várzeas marginais, que ainda existem, apesar de não conterem água, não são representados, apesar da menção na legenda. Reprodução: IBGE

Passados mais de 20 anos, o mundo altamente tecnológico atual não eliminou os vazios nos mapas. Dados constantes nas representações atuais não refletem com precisão ocupações e populações difusas, as mais vulneráveis, que permanecem sendo mal atendidas pelas gestões públicas.

“As informações obtidas através das ferramentas de geoprocessamento são cada vez mais fundamentais e utilizadas no processo de tomada de decisões para fins de gestão. No entanto, muitas vezes a cartografia oficial é deficiente em cobertura espacial e/ou temporal e falha em termos de representatividade social. Regiões e grupos sociais marginalizados pelos governos ao redor do mundo comumente não são contemplados”, explica Igor da Mata Oliveira, professor do curso de engenharia de pesca da UFAL – Universidade Federal de Alagoas, instituição parceira no MapSãoFrancisco.

Como e porque mapear o Velho Chico

Nas ações planejadas pela iniciativa estão inclusos o mapeamento de populações que, vivendo no que é representado hoje como um “vazio cartográfico”, são vítimas de situações de não respeito a direitos humanos e cidadania básicos, garantidos por lei: saúde, alimentação, moradia, educação e informação de qualidade, dentre tantos.
Dentre as prioridades do MapSãoFrancisco está a prevenção e o preparo para situações extremas. No caso particular do Baixo São Francisco, temos um exemplo situação de risco de alta relevância a região, até o presente, nunca foi preparada para o caso de uma grande enchente desde a regularização do rio.

Um evento extremo no presente, com o rio assoreado e um grande numero de ocupações humanas não só no leito seco do rio (e de suas lagoas e várzeas marginais), nos apresentará uma planície de inundação completamente diferente daquela até então ocupada pelas águas do Velho Chico quando corria livre, já que a calha atual não dispõe do que seria o “volume de amortecimento”.

Em poucas palavras, o atrofiado rio não comporta mais um eventual e possível grande aporte de água como em seu tempo de ciclos naturais. As populações e as gestões municipais, estaduais e federal devem estar preparadas para uma situação deste nível.

Conhecimento local, tecnologia aberta pública e mapas da realidade

O mapeamento colaborativo surgiu no mundo, em 2004, com a criação da plataforma OpenStreetMap. No caso do Baixo São Francisco temos a bem sucedida experiência da atividade realizada em 2017 na comunidade quilombola da Resina, em Brejo Grande, estado de Sergipe.

Foi quando ficou ainda mais evidenciada que a contribuição do conhecimento local para melhorar os mapas é essencial, o que pode ser realizado por pessoas mapeadoras em suas diversas localidades.

Quem nos explica o porque do uso do mapeamento colaborativo é Antônio Laranjeira, jornalista e pesquisador engajado na democratização das geotecnologias. “Conforme a definição conceitual que fundamenta a palavra, um ‘mapeamento’ é um ato de mapear, um ato composto por codificações que podem ser individuais ou coletivas. ‘Mapas’ podem ser compreendidos como produtos dos mapeamentos”, diz Laranjeira.

Atualmente, a plataforma OpenStreetMap é a mais aberta e inclusiva da web na modalidade de “mapeamento colaborativo”, quando lugares, vias e áreas se tornam visíveis em um mapa baseado em dados livres. Neste contexto é possível colaborar, seja como criador de mapas ou como verificador de mapas, de modo aberto e livre para reprodução e tudo por meio de uma comunidade em redes regionalizadas em cada país do mundo.

Mapeamento colaborativo x mapas oficiais

“Compreender que um mapeamento feito por uma pessoa habitante é diferente do mapeamento de uma pessoa estrangeira ou de uma pessoa viajante é o primeiro passo para entender que os mapas livres são bases diferentes dos mapas oficiais, feitos pelo governo e utilizado por instituições diversas.

Além de serem dados supostamente mais defasados, considerada a alta probabilidade da colaboração online, a comparação entre dados oficias e dados livres tem sido cada dia mais cooperativos. A ideia deste projeto é, de modo inédito na região, fornecer uma base de dados atualizada por agentes locais é contribuir de modo amplo e abundante com fontes oficiais nacionais para trabalhos de monitoramento e conservação do meio ambiente na região”, conclui Antônio Laranjeira.

Os idealizadores do MapSãoFrancisco são categóricos quando ao fato de que a iniciativa é aberta a cooperações com instituições de ensino e pesquisa, organizações da sociedade civil e coletivos sociais que tenham interesses comuns com os objetivos do projeto.

No caso das parcerias com instituições de ensino, como escolas técnicas e universidades, por exemplo, o projeto conta com a indispensável participação dos alunos, sobretudo aqueles das regiões onde há áreas sendo mapeadas.


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Fontes: Canoa de Tolda; HOT – Humanitarian OpenStreetMap Team; GEO – Group on Earth Observation; HOT – One Billion People mapping project;