por Carlos Bocuhy | Le Monde Diplomatique Brasil

As discussões acumuladas durante 26 anos de cúpulas climáticas demonstraram, em função de avanços lentos e ainda precários, que a solução deve ser global e que dependerá de um estágio avançado de multilateralismo colaborativo, com essencial senso de solidariedade para a resolução de um problema comum a todos.


A COP26 resultou no novo pacto climático de Glasgow. Os avanços na tentativa de reduzir as emissões de gases do efeito estufa (GEE) representam apenas metade do esforço necessário para diminuir as emissões e conter o aumento da temperatura global em apenas 1,5 ºC, dentro da meta estabelecida pelo Acordo de Paris. Esse limite é vital para muitos países, pois acima disso chegaremos a um patamar de insegurança inaceitável.

As metas acordadas em Glasgow ainda apontam para um aumento da temperatura muito acima de 1,5 ºC, ou seja, de 2,7 ºC. Portanto, trata-se de um tema em aberto, cuja solução foi procrastinada para as próximas cúpulas climáticas.

O cenário pós-Glasgow demonstra também uma quebra de confiança nas nações mais ricas, que falharam ao não sinalizar seu apoio financeiro aos países em desenvolvimento, além da recusa de diminuir suas emissões. Dentre as duas centenas de nações-partes envolvidas, os estudos sobre emissões de gases de efeito estufa demonstram que 10% dessas nações, os países do G20, os mais ricos do mundo, são responsáveis por 80% das emissões que envenenam o clima do planeta. Entre esses está o Brasil.

É incompreensível, diante da emergência climática revelada no último relatório do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) que essas nações não sejam fortemente pressionadas. Os que mais poluem usufruem de uma zona de conforto, enquanto continuam a disputar entre si hegemonia e mais riqueza, alimentando sob seu PIB grandes corporações e um sistema econômico baseado em combustíveis fósseis.

Esse impasse nos leva à necessidade de refletir estrategicamente sobre os rumos e o contexto a ser enfrentado na COP27 no próximo ano, que será sediada em Sharm el-Sheikh Sinai, no Egito, onde vigora um regime autoritário comandado pelo general Abdel Fattah el-Sisi. Sem sombra de dúvida, o grande marco da COP26 foi a expressiva militância multiétnica que protestou pelas ruas de Glasgow. No Egito, essa pressão social certamente não contará com condições favoráveis, já que haveria repressão pelo regime autoritário diante de manifestações de grupos locais.

Ao longo da longa estrada entre as COP1 e COP26, as Nações Unidas se empenharam em demonstrar o que representa, para a humanidade, um estágio de clima seguro e qual é a sua relação com os diferentes níveis de vulnerabilidade das nações. Um estágio de clima seguro diz respeito aos direitos humanos. É um elemento vital do direito ao meio ambiente equilibrado e à saudável qualidade de vida, sendo absolutamente essencial para a vida e o bem-estar não só dos humanos, mas também para os ecossistemas e espécies vivas.

As discussões acumuladas durante 26 anos de cúpulas climáticas demonstraram, em função de avanços lentos e ainda precários, que a solução deve ser global e que dependerá de um estágio avançado de multilateralismo colaborativo, com essencial senso de solidariedade para a resolução de um problema comum a todos.

Foto: Pexels

Por outro lado, estudos e projeções demonstram que o estado de vulnerabilidade será maior para os países em desenvolvimento. A resposta aos riscos climáticos poderá ser equacionada de forma mais eficiente nas grandes economias, que possuem maiores recursos para a adaptação climática e proteção de suas comunidades.

Quando os riscos são avaliados, é preciso determinar a capacidade de reação. Um evento climático de menor intensidade em um país pobre pode provocar mais danos do que um evento mais intenso em um país rico. O que define o nível de vulnerabilidade é a capacidade de resiliência e de reação da sociedade local diante do risco. A capacidade de reação depende de condições materiais, planejamento e recursos humanos e operacionais.

Esse raciocínio parece ser óbvio, mas avaliar a capacidade de reação diante de desastres naturais faz uma grande diferença para a discussão sobre nexo causal e a responsabilidade na reparação dos danos. As digitais plasmadas nas consequências das mudanças climáticas certamente demandarão equacionamento em legislações nacionais e internacionais, que estabelecem a obrigatoriedade de reparação de danos ambientais.

A variabilidade dos danos a partir de diferentes condições socioeconômicas demanda políticas preventivas que possam potencializar a capacidade de absorção dos impactos climáticos. Por exemplo, a capacidade de resposta a um desastre como foi o do furacão Katrina em New Orleans, que contou com a resposta de um aparato proporcionado pela conjuntura econômica norte-americana, seria completamente diferente se o mesmo evento ocorresse em Mumbai, na Índia. Obviamente não haveria a mesma capacidade econômica e operacional de assistência aos atingidos, nem a mesma capacidade de restauração das condições basilares essenciais à sobrevivência da comunidade.

Um grande campo de discussão se abre dentro do enfoque da injustiça climática. O abismo da desigualdade econômica e da capacidade de reação permanece como um desafio aberto entre as nações-partes. O único ponto de consenso na COP26 parece ter sido manter vivo o marco teórico de 1,5 ºC como limite máximo, sem demonstrar solidariedade em sinalizar, de forma clara, como a responsabilidade dos maiores emissores estará presente nas medidas de apoio aos mais vulneráveis.

Tampouco ficou claro de onde virão os recursos que possibilitem, aos países mais pobres, sobreviver dignamente ao adotar mudanças estruturais nas suas matrizes econômicas e energéticas. A sinalização dos recursos iniciais para esse processo já foi estimada em US$ 100 bilhões e não saiu do papel, reduzindo-se a um limitado suporte técnico que ficará concentrado nas Nações Unidas.

Da parte brasileira, nada sinaliza que possamos melhorar o desempenho e a imagem do país. Nossa credibilidade foi agravada por apresentar o maior volume de desmatamento dos últimos quinze anos, assim como pela tentativa de esconder os dados produzidos pelo sistema PROTER, em posse do governo dias antes da COP26. Trata-se de um episódio vergonhoso, pois demonstra a deslealdade no diálogo e a tentativa de manipulação.

Em 2022 o Brasil estará mergulhado em mais um sufrágio democrático do qual dependerá sua própria sobrevivência no cenário internacional, pois certamente o meio ambiente brasileiro e a própria economia, dependente das commodities, não resistiriam a mais uma gestão ambiental destrutiva do governo de Jair Bolsonaro.

No cenário internacional, as nações-partes serão testadas em seus aspectos civilizatórios, com a exigência de resultados concretos, para além de meras promessas e procrastinação. A sociedade civil internacional será testada no Egito frente a um regime nada democrático, em defesa da própria comunidade local, considerada, social e ambientalmente, de alta vulnerabilidade.

Em 2022, rumo à COP27, o mundo deverá exercer sua capacidade humanitária e produzir resultados palpáveis. A solidariedade, diante da necessidade de sobrevivência, não pode esperar.

Carlos Bocuhy – é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).


Fontes

Le Monde Diplomatique – Brasil


Leia ainda

A furiosa e disfarçada guerra pela Água no Brasil

Brasil vive catástrofe climática em completo silêncio

Rios deveriam ter direitos semelhantes aos das pessoas?


O artigo não exprime, necessariamente, a opinião do InfoSãoFrancisco.