por Patrick Barkham – The Guardian

Em todo o mundo, ativistas estão lutando para proteger seus rios, dando-lhes personalidade jurídica. Isso é apenas simbolismo ou pode gerar mudanças ambientais duradouras?

Neste artigo da série Outros Rios, o InfoSãoFrancisco apresenta aos leitores atualização sobre o crescente movimento mundial que confere aos rios (e demais elementos da natureza) a personalidade jurídica.


Por quase 320 quilômetros, o rio Magpie serpenteia majestosamente pelas florestas do Quebec. Sua magnífica faixa azul é apreciada por canoístas, caiaques de corredeiras e pelo povo nativo Innu de Ekuanitshit. No início deste ano, pela primeira vez no Canadá, autoridades locais concederam ao rio personalidade jurídica com nove direitos, incluindo o direito de fluir, o direito da proteção contra poluição – e o direito de processar [juridicamente].

Uapukun Mestokosho, membro da comunidade nativa Innu que fez campanha pelo reconhecimento dos direitos do rio, disse que passar um tempo no rio era “uma forma de cura” para os povos indígenas, que assim poderiam reviver suas práticas tradicionais baseadas na terra. Práticas que haviam sido abandonadas durante a violência da era colonial.

“As pessoas estão sofrendo muito, com traumas intergeracionais vinculados ao passado”, disse Mestokosho ao CBC. Além desse benefício para as pessoas, ela disse que seus ancestrais sempre protegeram o Magpie, conhecido no passado como Muteshekau-shipu, e que o reconhecimento de seus direitos ajudaria a protegê-lo para as gerações futuras.

O Magpie é um dentre o cada vez maior número de rios a ser reconhecido como uma entidade viva em todo o mundo. O crescente movimento pelos direitos da natureza vem pressionando as autoridades locais, nacionais e internacionais a reconhecerem as características naturais – de lagos a montanhas – na forma da lei, dando-lhes tanto personalidade jurídica ou o direito independente de florescer.

Dar aos rios o status de pessoas – ou mais – em tribunais é algo que está estimulando o ambientalismo em todo o mundo. O Equador deu início ao movimento consagrando os direitos da natureza em sua constituição em 2008. Países como Bolívia, México e Colômbia criaram mecanismos legais comparáveis ??para proteger a natureza, enquanto a Nova Zelândia, Austrália e Bangladesh agiram para proteger os rios. Nos Estados Unidos, os moradores de Toledo redigiram uma declaração de direitos para o Lago Erie. Mas, poderiam os direitos legais da natureza protegê-la na realidade? Quem decide quando um rio pode processar [juridicamente]? Isso diminuiria o poder da natureza de inseri-la no sistema jurídico ocidental? Ou será que os direitos da natureza desafiam os próprios fundamentos do capitalismo?

Pensadores jurídicos ocidentais começaram a investigar a suposição predominante do Iluminismo, ainda em 1972, onde os objetos naturais eram simplesmente propriedade a ser explorada, quando um jovem professor de filosofia jurídica, Christopher Stone, argumentou que o meio ambiente deveria ser considerado como um sujeito e a ele caberia personalidade jurídica – como concedido às empresas , por exemplo – com tutores humanos capazes de buscar reparação legal se um recurso natural fosse danificado ou destruído.

O atual movimento tem início em 2017 quando, na Nova Zelândia, uma lei do parlamento concedeu a todo o rio Whanganui direitos como uma entidade independente, considerando-o um todo indivisível da nascente ao mar. Tal ação foi parte do tratado entre o governo e o povo M?ori e guardiões foram nomeados para agir e falar em nome do rio garantindo seus direitos.

Mas afinal, o que é um rio? A maioria das pessoas não consideraria suas margens, mas sua água corrente. Infelizmente, o “elefante na sala”, como diz a Dra. Erin O’Donnell da Universidade de Melbourne e autora de um livro sobre os direitos dos rios, é o fato de que nenhum dos rios hoje legalmente reconhecidos como seres vivos ou pessoas jurídicas ter realmente direitos à água que flui em suas margens.
“Há cada vez mais uma tentativa de dar aos rios o direito de fluir e, portanto, o Rio Magpie no Canadá tem o direito de fluir, mas como você impõe esse direito é muito incerto”, disse O’Donnell. “E se isso não está realmente embutido na lei da água, o que ainda não está, então provavelmente não vale o papel em que tal está escrito.”

Na Nova Zelândia, o tratado do Whanganui não abordou essa questão fundamental, onde até hoje uma empresa continua a desviar 80% do fluxo do rio para energia hidrelétrica até que sua licença expire em 2039. Se esse fato faz com que os direitos sobre os rios aparentem ser um simbolismo sem poder , O’Donnell e outros argumentam que o conceito ainda possui um real poder transformador. No Canadá, David Boyd, professor de direito e Relator Especial da ONU sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente, disse que a pessoa jurídica poderia ter sucesso onde décadas de leis ambientais falharam, dando início a uma mudança cultural longe de conceber a natureza como um “armazém de mercadorias para uso humano ”.

Na Austrália, essa mudança está ocorrendo em relação ao rio Yarra, acredita O’Donnell. O Yarra foi reconhecido como uma entidade viva e integrada, pois seus proprietários tradicionais, o povo Wurundjeri, sempre o conheceram como tal, conforme uma lei estadual de 2017. Porém, ao contrário do Lago Erie e outros locais na América do Norte, o Yarra não foi considerado como pessoa jurídica. “A vantagem de ter personalidade jurídica é que você tem poderes jurídicos extras, então um rio que é uma pessoa jurídica pode ir a tribunal. A desvantagem é que você imediatamente concentra a atenção das pessoas nesses direitos e poderes e espera que o rio comece a usá-los ”, diz O’Donnell. “Uma das primeiras perguntas que recebo quase todas as vezes que falo publicamente sobre a questão dos rios terem direitos é: ‘Podemos processar o rio quando ele inunda?’” Assim que o Lago Erie obteve direitos nos Estados Unidos, fazendeiros – preocupados com o fato de que medidas para impedir que fertilizantes caiam no lago ameacem seus negócios – contestaram no tribunal.

Ter o Yarra reconhecido como uma entidade viva aparenta ser um passo mais fraco do que a personalidade jurídica, mas ainda tem “o potencial mais transformador na forma como as pessoas se relacionam com o rio”, argumenta O’Donnell. Até muito recentemente, o rio era um recurso a ser explorado: uma fonte de água, uma drenagem de águas pluviais e um esgoto. “Ao ver o rio como um ser vivo, é aí que começamos a dizer, espere, o que queremos para ele? Essa é a mudança genuína na discussão que estou vendo com o Yarra, afastando-se do modelo ocidental de extração de recursos e buscando uma parceria com o rio em seu próprio gerenciamento. ”

Porém, alguns céticos dos direitos da natureza argumentam que isso simplesmente não pode se enquadrar na lei ocidental, que defende o capitalismo, os direitos de propriedade e a extração de lucro dos recursos da Terra. Após o Equador ter incorporado os direitos da natureza em sua constituição, em 2011 um tribunal provincial decidiu a favor do rio Vilcabamba contra a construção de estradas. O rio venceu no tribunal, mas o órgão desenvolvedor não tomou as medidas necessárias para remediar a poluição. Desde então, os tribunais do Equador já realizaram mais de três dezenas de ações judiciais em nome da natureza. Muitos foram bem-sucedidos, mas nem sempre os veredictos foram executados na prática.

Na Índia, uma alta corte estadual tentou dar aos rios Ganges e Yamuna a personalidade jurídica em 2017, mas a decisão foi apelada para a suprema corte. Os ativistas ainda estão esperando pelo veredicto enquanto os rios continuam a ser poluídos e explorados.

Oliver Strewe/Getty Images
Deep feeling: in 2017 the New Zealand parliament granted Whanganui River rights as an independent entity, an indivisible whole from source to sea.

Os direitos da natureza estão sendo afirmados com mais força em países pós-coloniais, onde os povos nativos se esforçam para proteger as terras tradicionais. Mas alguns ativistas indígenas vêem a personalidade jurídica e os “direitos” da natureza como construções ocidentais. “O uso de direitos não se encaixa perfeitamente nos ensinamentos de muitos povos indígenas”, disse Michelle Bender, do Earth Law Center, uma influente cooperativa com sede nos Estados Unidos. “A natureza é a fonte da vida, já é uma entidade a ser respeitada e por isso algumas pessoas dizem que não precisamos desse reconhecimento de direitos. Para ser claro, o movimento pelos direitos da natureza está aprendendo com uma visão de mundo indígena, e não o contrário. O uso dos direitos da natureza pode ajudar a reorientar a lei em torno das relações e responsabilidades indígenas com a natureza. ”

A Europa está atrás de outros continentes, onde os povos indígenas desafiaram os conceitos ocidentais de propriedade e exploração da natureza. Na Grã-Bretanha, os direitos da natureza surgiram brevemente em 2018, quando o conselho municipal de Frome, administrado por vereadores independentes com mentalidade comunitária, propôs a aprovação de um estatuto reconhecendo os direitos de seu trecho do rio Frome e de seus alagados permanecerem livres de poluição. Tardiamente, em 2020, o governo central britânico disse que o conselho de Frome não poderia aprovar seu estatuto porque estaria duplicando as proteções ambientais existentes.

Mumta Ito, fundadora da Nature’s Rights e ex-advogada ambientalista na Escócia, diz que não é possível fazer leis locais na Grã-Bretanha como os municípios na América do Norte podem. “Então você tem a reação, as vozes que dizem que isso não funciona”, diz ela. “Claro que não funciona. Como uma parte do rio Frome pode ter direitos quando o trecho que atravessa o próximo condado [unidade política equivalente ao município brasileiro] não tem? Tudo o que você pode alcançar com essas leis, em nível local, é aumentar a conscientização. ”

Ito argumenta que não podemos simplesmente deixar os direitos da natureza no sistema jurídico atual, mas exigir uma mudança muito mais fundamental. Em última análise, a lei deve reconhecer que os direitos da natureza vêm em primeiro lugar, seguidos pelos direitos humanos e, em seguida, pelos direitos corporativos, porque sem sistemas vivos, como água limpa, ar e solos férteis, não há vida humana. “Somos uma parte intrínseca da natureza e nosso direito humano à vida emana dos direitos da natureza. Todos os direitos humanos existem por causa da natureza. É irracional dizer que temos direitos à vida ou direitos de propriedade se os direitos da natureza não forem alcançados. Mas temos um sistema econômico que mina o sistema natural de onde viemos. ”

Essas mudanças jurídicas radicais provavelmente exigiriam que desenraizássemos os conceitos ocidentais estabelecidos de direitos de propriedade, individualismo e crescimento econômico incessante. “Por onde começamos?” disse Ito. “Devemos começar com bom senso. Pessoas se conectando com a natureza realmente vão ajudar. Todos nós já experimentamos como nos sentimos bem na floresta ou à beira-mar. É difícil fazer com que as pessoas se importem com algo se não fizerem a conexão. ”
Em vez de lutar em nível local na Grã-Bretanha, Ito está examinando como a UE poderia reconhecer os direitos da natureza. Ito diz que os comissários e legisladores da UE estão prestando atenção. “Pelo menos eles estão dispostos a ouvir o que temos a dizer.”

Outros direitos dos defensores da natureza também miram mais alto. Os rios cruzam as fronteiras estaduais e nacionais e a maioria não tem fronteiras, acabando por desembocar no mar. Proteger os oceanos parece uma tarefa particularmente difícil, mas Michelle Bender argumenta que pode ser mais fácil fazer valer os direitos da natureza aqui, porque ninguém é dono do alto mar. Os direitos da natureza não entram em conflito com os direitos de propriedade, portanto, os oceanos podem ser mais facilmente reconhecidos como uma entidade legal independente. “O oceano se daria por si mesmo e as decisões seriam tomadas considerando seu bem-estar e impacto em toda a vida, ao invés de apenas a abordagem fragmentada que é usada atualmente”, diz Bender. Pode haver um assento para o oceano na ONU ou um conselho de guardiães do oceano que são legalmente responsáveis ??por representar as necessidades do oceano. Eles poderiam estabelecer padrões para um oceano “saudável”.

Em alguns aspectos, as novas leis de direitos da natureza se assemelham às metas de emissões “nulas” estabelecidas por governos, conselhos e corporações: aspirações valiosas que ainda precisam ser traduzidas em ações decisivas e mudanças na vida real. Há também um elemento do ovo e da galinha neste debate: pode o direito mudar a consciência popular ou está fadado ao fracasso se não apenas sustentar os valores existentes?

Os ativistas acreditam que a lei pode e muda a maneira como pensamos. Para Ito, sua ambiciosa busca pelos direitos da natureza não é tão frustrante quanto seus anos como advogada ambiental buscando defender a natureza usando estruturas existentes inadequadas. “Pelo menos nisso, poderei olhar meus netos nos olhos e dizer que fiz o que pude”, diz ela.

“As mudanças no sistema legal afetam profundamente a psique. Se a lei diz que estou relacionado com o oceano e o rio, não demorará muito para que as pessoas comecem a se comportar como se estivéssemos interligados com outras formas de vida no planeta. ”

Artigo publicado originalmente no The Guardian.

Tradução: Carlos E. Ribeiro Jr/InfoSãoFrancisco


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