por Marcos Pivetta | Revista Pesquisa FAPESP

Estudos indicam que as mudanças climáticas provocadas pelo homem potencializam os eventos extremos.


Mais evidências científicas indicam que as mudanças climáticas provocadas pelo homem desempenham um papel importante no aumento da frequência e intensidade dos chamados eventos extremos, como fortes ondas de calor ou de frio e episódios de chuva concentrada ou seca prolongada. Um estudo recente nessa linha, feito por pesquisadores do Brasil e do exterior, analisou as características das chuvas torrenciais que, entre o final de maio e o início de junho, assolaram partes da Região Metropolitana do Recife e áreas de mais quatro estados do Nordeste. Segundo o trabalho, esse episódio de grande pluviosidade, que provocou ao menos 133 mortes e 25 mil desabrigados, tornou-se 20% mais forte devido ao aquecimento global.

Em seu momento mais crítico, entre 27 e 28 de maio, em menos de 24 horas caíram mais de 200 milímetros (mm) de chuva na capital pernambucana e em cidades vizinhas. O volume equivale a 70% da pluviosidade esperada para a região em todo o mês de maio. As chuvas muito acima da média e concentradas em um curto período também atingiram partes dos estados de Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba.
O aquecimento global é um fenômeno atribuído ao aumento da emissão de gases de efeito estufa a partir da Revolução Industrial. Compostos como o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4), que aquecem a atmosfera terrestre, são produzidos ou derivam em grande medida de atividades humanas, relacionadas à queima de combustíveis fósseis e a mudanças no uso e cobertura do solo. Desde meados do século XIX, época considerada como um marco da era pré-industrial, a concentração média de gases de efeito estufa na atmosfera terrestre aumentou quase 60% – de 270 para 420 partes por milhão (ppm) – e a temperatura média do planeta subiu 1,2 grau Celsius (ºC). Mais quente e, portanto, com mais energia, o clima global acelera uma série de processos atmosféricos, inclusive os eventos extremos.

Os resultados do estudo sobre as chuvas extremas no Nordeste foram tornados públicos no início de julho, pouco mais de um mês após a ocorrência do evento, na forma de um relatório técnico disponibilizado on-line. “Se tivéssemos optado por fazer um artigo científico, só poderíamos divulgar as conclusões do trabalho depois que ele fosse publicado em uma revista com revisão por pares”, comenta o climatologista Lincoln Muniz Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos autores do estudo, que mobilizou 23 pesquisadores do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos. “Todo esse processo provavelmente demoraria muitos meses.”


Vegetação queimada na Amazônia durante a grande seca de 2015. Foto: Fabio Colombini

Ao escolher produzir um relatório técnico, os autores tentaram encurtar o longo caminho normalmente percorrido entre a informação mais técnica que aparece nos periódicos científicos e as ações da sociedade e das autoridades públicas responsáveis por tomar decisões capazes de ao menos minorar os impactos dos eventos extremos. “As conclusões de nosso estudo são robustas”, disse, em entrevista a Pesquisa FAPESP, a primeira autora do trabalho sobre as chuvas no Nordeste, a cientista do clima indiana Mariam Zachariah. “A metodologia que usamos para verificar se as mudanças climáticas potencializam os eventos extremos já foi publicada em revistas com revisão por pares e hoje é amplamente aceita.”

Zachariah faz estágio de pós-doutorado no Instituto Grantham do Imperial College de Londres, no Reino Unido, que recentemente passou a contar em seu corpo docente com a climatologista alemã Friederike Otto. Principal referência internacional nos estudos de atribuição climática, como são denominados os trabalhos que tentam quantificar a possível influência das mudanças do clima em eventos extremos específicos, Otto, que também assina o trabalho sobre as chuvas do Nordeste, trocou em outubro do ano passado a Universidade de Oxford pelo Imperial College.

Mapa mostra a temperatura máxima registrada nas ilhas britânicas no auge da onda de calor. NCEO/Universidade de Leicester

De forma simplificada, a metodologia empregada nos estudos que tentam averiguar se as mudanças climáticas globais tornam mais fortes ou frequentes os eventos extremos é a mesma. Os pesquisadores coletam dados sobre o fenômeno específico em análise, como as chuvas de maio no Nordeste ou a atual onda de calor no verão europeu, e caracterizam o clima, a geografia e outros aspectos da região em que o evento extremo ocorreu. Em seguida, fazem centenas de simulações computacionais nas quais tentam determinar com que intensidade e frequência um evento extremo como o estudado ocorreria em dois cenários globais distintos: no mundo atual, com uma taxa de concentração de gases de efeito estufa da ordem de 420 ppm e cerca 1,2 ºC mais quente do que no século XIX; e nas condições pré-industriais, quando praticamente não havia influência humana sobre o clima, a temperatura média global era menor e a taxa de gases de efeito estufa era de 270 ppm.

Se o evento extremo simulado se torna mais forte e mais recorrente nas condições atuais do que nas do passado pré-industrial, os pesquisadores interpretam esse resultado como uma evidência de que as mudanças climáticas atuais, impulsionadas pelas atividades humanas, amplificam esse fenômeno. “Uma parte importante desse tipo de estudo é quantificar o peso das mudanças climáticas na ocorrência de um determinado evento extremo”, explica Zachariah.

Para minimizar o risco de erro nas simulações e verificar a consistência dos resultados, os pesquisadores rodam os cenários em vários modelos climáticos, os mesmos que embasam boa parte das conclusões e projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). “Não temos uma estrutura computacional no país dedicada a rodar essas simulações para estudos de atribuição climática”, comenta Lincoln Alves. “Por isso, temos feito parcerias com os britânicos, que são fortes nessa área.”

Um levantamento publicado no início do ano passado pelo site britânico CarbonBrief, especializado na cobertura da ciência e da política do clima, listou mais de 350 estudos de atribuição climática publicados na literatura científica. De acordo com o site, em 80% dos trabalhos feitos nos últimos 10 anos foi determinada alguma influência antrópica na periodicidade ou intensidade de eventos extremos (ver Pesquisa FAPESP nº 307).

Um estudo mais recente, que não consta desse levantamento, foi publicado em outubro do ano passado na revista científica Climate Resilience and Sustainability. Segundo o trabalho, feito por pesquisadores brasileiros e do exterior, as mudanças climáticas tornam quatro vezes maiores os riscos de ocorrer grandes secas na Amazônia, nos moldes da que houve entre 2015 e 2016, considerada a mais severa das últimas décadas. No período, as chuvas na região, sobretudo no nordeste da Amazônia, foram significativamente menores do que o esperado.

“Houve um grande El Niño e esse fenômeno [caracterizado pelo aquecimento anormal das águas superficiais da região tropical do oceano Pacífico] influencia os níveis de pluviosidade em várias partes do globo, inclusive na Amazônia”, diz a bióloga Liana Anderson, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), uma das autoras do estudo, ao lado de Lincoln Alves. Na ocasião, a diminuição das chuvas levou à morte de cerca de 2,5 bilhões de árvores em uma área equivalente a apenas 1% da maior floresta tropical do planeta. Além de diminuir a capacidade da floresta de realizar fotossíntese e, por consequência, de retirar CO2 da atmosfera, as árvores que morreram devido à seca extrema vão liberar carbono para atmosfera ao longo de duas décadas por meio do processo de decomposição. Esses dois impactos contribuem para o aumento do efeito estufa. “Os eventos extremos podem retroalimentar as mudanças climáticas e criar um círculo vicioso”, comenta Anderson.

Bombeiros tentam combater incêndio em Londres em 19 de julho, quando o Reino Unido registrou 40,3 ºC. Carl Court/Getty Images

Onda de calor

Fenômenos climáticos superlativos, que fogem completamente do padrão rotineiro previsto pela ciência, sempre existiram. Mas, até o passado recente, as fortes ondas de calor ou de frio e os episódios de chuva ou de seca concentrada eram vistos como raras exceções à regra, decorrentes apenas ou majoritariamente de variações naturais da dinâmica do clima. Hoje não mais. Segundo o mais recente relatório do IPCC, ondas de calor muito intensas que ocorriam uma vez a cada 100 anos antes do século XX, quando a influência humana sobre o clima era desprezível, tornaram-se atualmente 4,8 vezes mais frequentes e 1,2 ºC mais quentes.

Ainda não deu tempo para fazer um estudo específico sobre o eventual papel do aumento da concentração de gases de efeito estufa na atual onda de calor que provoca incêndios, mortes e recordes de temperatura máxima no verão europeu, como os 40,3 ºC na capital britânica em 19 de julho. Mas, se um trabalho recente servir como parâmetro, as perspectivas não são animadoras. Uma pesquisa de 2020 liderada pelo climatologista francês Robert Vautard, do Instituto Pierre-Simon Laplace, analisou as duas ondas de calor que se abateram sobre a Europa continental no verão de 2019, com temperaturas acima de 46 ºC na França, e concluiu que as mudanças climáticas tornam esses eventos muito mais frequentes e mais exacerbados.
Com os níveis atuais de CO2, o principal gás que provoca o aumento da temperatura média do planeta, tais eventos tendem a ser entre 1,5 e 3 ºC mais quentes do que antes da Revolução Industrial e a ocorrer a intervalos entre 50 e 150 anos na França e na Holanda. Sem as mudanças climáticas, ondas de calor tão fortes assim só ocorreriam a cada mil anos, de acordo com o trabalho, publicado no periódico científico Environmental Research Letters.

“Esse é o novo normal. Ondas de calor vão se tornar mais frequentes por causa das mudanças climáticas. Essa conexão foi bem demonstrada pelo IPCC [em seu último relatório]”, disse, em comunicado de imprensa, o meteorologista finlandês Petteri Taalas, secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial (WMO), em 19 de julho, logo após o novo recorde de temperatura máxima da história do Reino Unido ter sido estabelecido. “Bombeamos tanto dióxido de carbono para a atmosfera que a tendência negativa continuará por décadas. Não conseguimos reduzir nossas emissões globalmente. Espero que esse seja um alerta para os governos e que tenha impacto nos comportamentos eleitorais em países democráticos.”


Artigos científicos

ZACHARIAH, M. et al. Climate change increased heavy rainfall, hitting vulnerable communities in Eastern Northeast Brazil. www.worldweatherattribution.org. On-line 5 jul. 2022.

RIBEIRO NETO, G.G. et al. Attributing the 2015/2016 Amazon basin drought to anthropogenic influence. Climate Resilience and Sustainability. 30 out. 2021.

VAUTARD. R. et al. Human contribution to the record-breaking June and July 2019 heatwaves in Western Europe. Environmental Letters. 28 ago. 2020.



Fontes: Revista Pesquisa FAPESP


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