por Heitor Scalambrini Costa

A viabilidade das usinas nucleares tem gerado intensos e calorosos debates sobre questões técnicas, econômicas, sociais, ambientais e mesmo questionamentos éticos e geopolíticos, e o discurso eufórico sobre o crescimento do número de usinas nucleares pelo mundo (e porque não no Brasil?), não condiz exatamente com a realidade.
 


A indústria nuclear insiste em propagar que está em pleno desenvolvimento no mundo, com novas tecnologias sendo disponibilizadas, como a dos pequenos reatores modulares (em inglês, SMR -Small Modular Reator). Chama atenção, neste caso, a omissão deliberada da palavra nuclear, na denominação dos pequenos reatores, evidenciando a habitual estratégia de comunicação ambígua que caracteriza esse setor.

Os que mais defendem a tecnologia nuclear chegam mesmo a antever (por meios sobrenaturais, talvez?), que as usinas nucleares desempenharão um papel fundamental na luta pela descarbonização, além de contribuírem para a transição com fontes limpas.

O discurso eufórico sobre o crescimento do número de usinas nucleares pelo mundo (e porque não no Brasil?), não condiz exatamente com a realidade. A verdade é que ocorreu uma desaceleração dos negócios nucleares nas últimas décadas, principalmente após a tragédia em Fukushima, que infelizmente não acabou.

Esta tecnologia de produzir energia elétrica funciona como uma termelétrica, onde o combustível que gera energia é extraído do minério de urânio, e transformado por diferentes processos industriais, até sua fabricação. Parte deste calor, gerado a partir da reação de fissão nuclear, aquece a água pressurizada, cujo vapor a alta pressão movimenta as pás de turbinas acopladas a um gerador, produzindo assim energia elétrica. A outra parte do calor, é retirada com sistemas de refrigeração, que geralmente usam água de rios, mares, grandes reservatórios e lagos.

Grande quantidade de resíduos é produzida pelas reações nucleares que ocorrem no combustível. Estes elementos químicos, criados artificialmente, são altamente radioativos, por até milhares de anos. É necessário armazená-los em locais de extrema segurança, e com estabilidade geológica, para os próximos milhares de anos. Uma situação que leva a reflexão sobre o lixo atômico, herança maldita deixada para as gerações futuras.

A viabilidade das usinas nucleares tem gerado intensos e calorosos debates sobre questões técnicas, econômicas, sociais, ambientais e mesmo questionamentos éticos e geopolíticos. Outro assunto é a questão do uso militar da energia nuclear, com a construção da bomba atômica (limpas/sujas!!!). Países que detém a tecnologia de enriquecimento, e outros processos da cadeia para produção do combustível nuclear, estão aptos para a construção da bomba, como é o caso brasileiro.

Nunca é tarde lembrar que são naqueles países com déficit democrático (Rússia, China, Índia, Arábia Saudita), que os publicitários “do nuclear” se referem, quando mencionam o crescimento de novas instalações pelo mundo afora. Nestes países a sociedade civil não tem nenhuma incidência, nem participação na política oficial adotada. São decisões autoritárias, que não aceitam o contraditório, agindo sob sigilo. Estes governos chegam a recorrer, muitas vezes, à violência para conter os crescentes movimentos antinucleares pacifistas.

A descarbonização das atividades econômicas tem no setor elétrico um potencial maior, desde que a geração de energia elétrica seja sustentável, com fontes renováveis de energia. No caso da geração nucleoelétrica é importante esclarecer, que várias indústrias estão envolvidas nas diferentes etapas para a produção do combustível nuclear. Começa com a mineração do urânio, seguindo a concentração (separação do urânio de outros elementos agregados), a conversão do concentrado em gás, o enriquecimento isotópico, a produção das pastilhas/combustível (que serão inseridas no núcleo do reator nuclear), o tratamento dos resíduos produzidos (lixo atômico), o armazenamento e o descomissionamento das usinas após atingirem sua vida útil.  Assim, conforme estudos científicos realizados, este conjunto de processos, o chamado “ciclo do combustível nuclear”, acaba gerando quantidades significativas de gases de efeito estufa.

Sustentar que a energia nuclear é uma fonte limpa, é propagar uma grande MENTIRA, pois contradiz o que demonstra a ciência, tão importante nos tempos atuais. NÃO EXISTE nenhuma fonte de energia (renovável e não renovável), que não gere algum tipo de emissões, de resíduos, de impactos socioambientais. As fontes não renováveis (petróleo e derivados, gás natural, carvão mineral, nuclear) são reconhecidas como as mais poluentes, as grandes responsáveis pelo aquecimento, e suas consequências para o planeta. E devem ser banidas da matriz energética mundial.

Assim, usar inadequadamente e incorretamente o termo “energia limpa”, tem o objetivo de qualificar a energia de “limpa”, induzindo a população em geral, uma mensagem de que a nuclear não faz mal às pessoas, nem ao meio ambiente. Que deve ser aceita e apoiada.

Outra desfaçatez é considerar esta fonte importante e necessária para a transição energética no Brasil. De tão mal vista pela população, no imaginário popular a energia nuclear está associada a promover a morte, e não a vida. Torna obviamente desnecessário o uso desta perigosa, cara e suja tecnologia, pela extraordinária abundância de fontes renováveis de energia (sol, vento, biomassa, água, …) disponíveis no território nacional.

Nos tempos atuais de conflito bélico, usar a Europa, grande consumidora e dependente do petróleo e do gás endógeno, para alavancar a narrativa de que o nuclear pode ser a salvação, são falsas justificativas levadas a cabo pelos interesses dos “negócios do nuclear”.

Este contexto de guerra mostra como as usinas nucleares se tornam alvos prioritários, fáceis e frágeis, podendo provocar contaminação radioativa de grandes proporções e irreversíveis danos para a saúde e para o meio ambiente. Quantidades expressivas de materiais extremamente perigosos para os seres vivos se encontram no interior destas instalações.

Vejam o caso dos ataques armados sobre o maior complexo nuclear europeu, de Zaporizhzhia, na Ucrânia, que colocaram em risco seu funcionamento e a integridade física das instalações. Felizmente não sofreu danos estruturais, e assim não houve, até o presente, informações sobre vazamento de material radioativo, como ocorreu tragicamente em Chernobyl, localizado a 80 km deste complexo. Todavia, muito mais preocupante foi a revelação pelo Greenpeace, que até o ano de 2017 havia no local 2.204 toneladas de elementos radioativos armazenados, 855 toneladas em piscinas e 1.349 toneladas a seco.

Se não bastasse o risco extremo de um ataque a uma central nuclear, avaliemos o significado de ter no planeta, mais e mais usinas nucleares, multiplicando a circulação de mais urânio enriquecido, plutônio e outros resíduos de alta radioatividade, de alta periculosidade.

Por tudo isso, é urgente e fundamental um amplo debate com a seriedade que o tema exige no Brasil, ancorado na transparência e na democracia. Diferente do que ocorre hoje, quando o assunto é nuclear. A sociedade brasileira não pode ficar refém de decisões que comprometam seu presente e seu futuro, tomadas em canais governamentais, sem a participação popular, sofrendo pressão direta do lobismo nuclear.

A ameaça à vida que representa a decisão de nuclearização, com a expansão do número de usinas nucleares no país, deve ser discutida amplamente e democraticamente pela sociedade, e com a transparência exigida. Decisão desta magnitude não deve ficar restrita ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE-órgão de assessoramento à presidência da república). O Brasil não deve contribuir com a ameaça da proliferação e do aumento da quantidade de material radioativo circulando e ameaçando constantemente o planeta.

Na Europa existe um intenso debate sobre a geração núcleo-elétrica. Países como Itália, Bélgica, Suíça, Alemanha e Áustria são favoráveis ao banimento da tecnologia nuclear. Outros como Espanha, Suécia e França (cuja dependência da nucleoeletricidade chega a 75%), ainda persistem nesta rota nuclear, por interesses próprios.

O pacifismo presente na luta antinuclear condena o uso bélico, em artefatos como a bomba atômica. Mesmo que a construção de armamentos nucleares seja proibida pela Constituição Brasileira de 1988, a política oficial, segue no sentido contrário, como os exemplos recentes do avanço no enriquecimento do urânio, em unidades da Marinha Brasileira.

Hoje, mais do que nunca falar e pregar a democracia só no discurso, e nada fazer de concreto, são ações meramente populistas. Sem correção de rumos acabarão colaborando com aqueles que propõem o autoritarismo.

Heitor Scalambrini – É físico pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), mestre em Ciências e Tecnologia Nuclear pelo Departamento de Energia Nuclear da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), doutor pela Universidade de Aix-Marselha-Laboratório de Fotoeletricidade/Comissariado de Energia Atômica da França, professor aposentado da UFPE e ativista antinuclear.


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