Rodado na clandestinidade e desconhecido no Brasil, documentário do suíço Peter von Gunten possibilita uma volta ao violento passado da remoção das famílias afetadas pela construção da UHE Sobradinho, permitindo o melhor conhecimento da evolução e sofisticação das “adequações” de grupos populacionais em zonas de grandes projetos governamentais às necessidades de atendimento “à modernidade do progresso”.


Corre o ano de 1980. A região de Sobradinho (no médio São Francisco, divisa da Bahia com Pernambuco, pouco acima das cidades de Juazeiro e Petrolina) ainda está em convulsão provocada pela fase final das obras da barragem de Sobradinho que já conta com uma máquina geradora operando.

Tal qual uma diáspora sertaneja, desde meados de 1977 milhares de pessoas – moradoras, por gerações, de localidades às margens do rio São Francisco – estão sendo removidas, para dar lugar ao reservatório da barragem de Sobradinho. O gigantesco lago da barragem, cujo enchimento começou no mesmo ano (a primeira turbina do complexo viria a operar em 1979), cobriu uma área de 4.214 km2, produzindo como primeiro e imediato impacto social (1)  a expropriação de 26 mil propriedades e o deslocamento forçado de mais de 60 mil pessoas (2).

As propostas da CHESF, para remanejamento das populações (as principais cidades – marcadas – tiveram novas sedes construídas), incluía a realocação na Serra do Ramalho, no oeste baiano. A distância citada refere-se à distância em linha reta.

A obra significou também a relocalização de quatro cidades: Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado, uma vez que suas sedes originais seriam submersas (3). As “cidades novas” foram construídas pela CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco, se juntando à redistribuição de terras como forma de indenização e compensação por parte das propriedades rurais submersas respectivamente.

Por toda a região se organizam movimentações de grupos, associações e entidades de agricultores, moradores, pescadores, como reação natural ao processo impositivo do governo federal na tentativa de obter menor perda para algo incalculável, como o abandono forçado de seus lugares, e o comprometimento de seus futuros, com a eliminação de trabalhos e rendas.

Terra Roubada

Em meio a este panorama, tenso, repleto de catástrofes pessoais e coletivas, está o cinegrafista suíço Peter von Gunten que produziria clandestinamente o documentário Terra Roubada (Geraubt Erde, em alemão, língua original do filme), muito provavelmente o único produzido sobre tão pouco falado – e deliberadamente esquecido – e grave conflito. Para a realização do filme, von Gunten contaria com o apoio do bispo local e de movimentos sociais, de agricultores e moradores, que estabelecerem reação ao projeto em si e à forma como a CHESF procedeu à retirada e realocação das famílias atingidas.

O documentário Terra Roubada permite que se conheça um pouco mais do violento drama de Sobradinho, fruto de políticas públicas elaboradas de modo não democrático que produziam (e ainda produzem) empreendimentos com impactos sociais e ambientais profundos e definitivos em grande escala com efeitos avassaladores que se estenderam ao nosso presente.


Em busca do filme desconhecido

Há cerca de três anos, em pesquisa sobre material relacionado à construção das barragens no São Francisco, nos deparamos com um fragmento de filme da década de 1980, sem identificação de autoria, porém com uma entrevista realizada com o engenheiro João Paulo Aguiar, da CHESF (com quem tivemos alguns contatos conflituosos ao longo de nossas atividades no Baixo São Francisco), então encarregado do canteiro de obras do projeto Sobradinho.

A partir da observação das legendas em alemão foi iniciada uma intensa varredura de apoio à pesquisa, com o objetivo de identificar o filme, autor, procedência. Não sem grande dificuldade, o filme Geraubt Erde, do diretor suíço Peter von Gunten foi localizado em algumas listagens de acervos específicos pelo mundo, e quanto mais informações eram obtidas sobre a produção, cresciam as evidências da grande relevância do documentário. A importância de Terra Roubada estava relacionada não só aos impactos diretamente sofridos pelas populações no entorno de Sobradinho, mas também das demais regiões afetadas pela barragem, como o Baixo São Francisco.

Terra Roubada era, portanto, mais um documento essencial para a construção do acervo da história recente do Baixo São Francisco que contribuiria para o conhecimento e análise de eventos que produziram um presente desastroso.

A necessidade de obtenção do documentário e autorização para sua veiculação no Brasil (onde nunca foi formalmente exibido) levou a pesquisa até a ONG suíça Helvetas, uma das apoiadoras de sua produção. Através da organização foi possível obter  tanto os números de telefone do diretor, como também seu endereço eletrônico, permitindo, finalmente, um contato direto.

Von Gunten acolheu nossa demanda com grande gentileza colocando-se imediatamente disponível para o envio do filme para o Brasil. Sua perspectiva, como manifestou, seria de que tantos anos após os testemunhos de diversos atores registrados, pudesse seu trabalho favorecer um melhor caminho. Sem sua colaboração, pela dificuldade provocada pela esparsa distribuição do filme – além das implicações desde sua produção – seria praticamente impossível sua apresentação aqui no Brasil, neste momento.

TERRA ROUBADA

Sobre o autor

Peter von Gunten nasceu em Berna, Suíça, em 1941. Entre 1956-61 Cursou a Kunstgewerbeschule (Escola de Artes Industriais) e em seguida estudou História da Arte. No período 1960-64 atuou como desenhista gráfico e fotógrafo para inúmeras agências de publicidade e ateliers de desenho gráfico, além de ter realizado ilustrações para filmes animados. De 1964 a 1970 criou seu atelier independente de desenho gráfico, realizou exposições de desenhos e fotografias. Desde 1967 está envolvido como autor, diretor, fotógrafo e produtor de curtas metragens, documentários e também tendo realizado longas metragens.

Dentre seus filmes mais conhecidos estão: Bananera libertad (1971), Die Stimme des Volkes ( El grito del pueblo ) (1977) e Para Sempre Pestalozzi (1989).


TERRA ROUBADA

Título traduzido:
GERAUBTE ERDE

Categorias
Filme estrangeiro / Longa-metragem / Sonoro / Não ficçãoMaterial original
16mm, COR, 55min, 495m

Data e local de produção
Ano: 1980

Cidade: Zurique

País: Confederação Helvética

Gênero
Documentário

Prêmios

FRG – Prêmio da Fundação Christopf Ekenstein.

1º. Prêmio – Interfilm / Menção OCIC – Fernsehworksshop Trier, Agrifilmfestival Berlin.

2ª Bienal Europeia de Cinema sobre Ambiente, Rotherdam, Holanda

Produção

Companhia(s) produtora(s):
SUISSIMAGE; Filmproduction

Companhia(s) co-produtora(s):
Cinov AG Filmproduktion – Bern – CW;
Westdeutscher Rundfunk – Köln – DE;
Landeszentrale für politische Bildung – Düsseldorf, DE;
Helvetas – Zürich – CW;
Schweizer Fernsehen DRS

Assistência de produção:
Ackermann, Katharina

Argumento/roteiro

Roteiro:
Gunten, Peter von;
Schnyder, Dorothe;
Kestering, Celito;
de Lage, Tarcisio

Direção

Direção: Gunten, Peter von

Assistência de direção: Schnyder, Dorothe

Fotografia
Câmera: Gunten, Peter von

Som
Som direto: Rudaz, Orlando
Mixagem: Seifert, Ivan

Montagem
Montagem: Gunten, Peter von

Música
Música: Música folclórica da região de Juazeiro – BA

Identidades/elenco:
[dublado(a) por Lage, Iveline]
[dublado(a) por Marggraf, Marianne]
[dublado(a) por Hoffmann, Amido]
[dublado(a) por Linde, Rainer zur]

Cartaz/capa documentário

Documentary film by Peter von Gunten
Airbrush, Negro-pen
42 x 59.4 cm, offset, 3 cores,,

Artista: Bundi Stephan
Título do cartaz: Terra Roubada

Imagem em destaque – Montagem fotograma Terra Roubada/Cartaz. © Peter von Gunten


Notas

(1) É importante a consideração de que ao citar “primeiro e imediato impacto social” estão implícitos os passivos socioambientais que viriam atingir o Baixo São Francisco com a supressão dos ciclos naturais do rio São Francisco que, sem suas cheias anuais, tornariam as lagoas marginais (dos sertões alagoano e sergipano até a foz do rio) definitivamente secas (posto que a vazão defluente estabelecida com a operação da UHE Sobradinho seria de 2.060 m³/s – dois mil e sessenta metros cúbicos por segundo – vazão esta cuja cota do espelho d’água ficaria abaixo das barras e entradas de lagoas, bem como do nível de inundação das várzeas), não mais cumprindo suas funções de serviço ambiental (base da biodiversidade da biota aquática) e socioeconômicas (base da economia de lavoura vazanteira).

(2) De acordo com a CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, o número de famílias afetadas pela implantação da UHE Sobradinho foi de 11.853 famílias (CHESF, 2001, pp 01), obra que deslocou uma população estimada em sessenta mil pessoas (60.000) segundo dados oficiais (SIGAUD, 1986).

Durante o processo de desocupação da área, as opções oferecidas aos camponeses resumiam-se em: a) mudar-se para o assentamento na Serra do Ramalho, distante (700 km) e diferente da região, que se mostrou um suplício para os que tentaram, de modo que a grande maioria das famílias o rejeitou; b) operação caatingueiro: mudança para a área de caatinga com ajuda de custo, e c) a chamada solução própria: migração induzida por uma ajuda de custo para onde a família quisesse.

Fontes

Swiss Films

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2017)

Folha de São Paulo

Albano, Maria Luiza Caxias – Barragem de Sobradinho e a inundação da cidade de Casa Nova/BA: uma (outra) narrativa a respeito do “desenvolvimento” no sertão baiano; ANPOCS – 2018

Mendes, Edcarlos; Germani, Guiomar Inez – DESTERRITORIALIZAÇÃO SOB AS ÁGUAS DE SOBRADINHO: GANHOS E DESENGANOS – RDE – Revista de Desenvolvimento Econômico; Ano XII Ed. Esp. Dezembro de 2010 Salvador, BA

Dantas, Carlos Eduardo de Oliveira; Análise dos efeitos dinâmicos em reservatórios de grande extensão: estudo de caso – Reservatório de Sobradinho, 2005: UFPE; 2005

Sigaud, Lygia – Efeitos Sociais de Grandes Projetos Hidrelétricos – As barragens de Sobradinho e Machadinho, Museu Nacional, 1986


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