A idealização e construção da barragem de Sobradinho, no final dos anos 1950, não seria um projeto isolado, antes o grande e determinante passo, estratégico, para o setor elétrico, que prosseguia com as políticas de posse do rio após a bem sucedida “entrada no sistema” com a construção de Paulo Afonso e Três Marias: garantia-se o domínio das águas do São Francisco via um sistema justificado por políticas públicas “redentoras”, não inocente  dos impactos que atingiriam ecossistemas, populações [redimidas] e sua cultura, abrindo caminho para outros segmentos pousarem suas mãos na torneira.

A partir de meados de 1979, para os Sub-médio e Baixo São Francisco, Sobradinho (1), de fato, passaria se constituir como a nova nascente – controlada pela mão do homem e submissa ao setor elétrico – em substituição aos olhos d’água na serra da Canastra.

Juntando-se à construção de Itaipu (1975/82), da ponte Rio-Niterói (1968/74 ) e da malfadada e delirante rodovia Transamazônica (1968/74), além de inúmeros outros projetos, Sobradinho (1973/79/80) foi uma das grandes obras do projeto de “Brasil Grande” dos governos militares que, no caso particular das intervenções no São Francisco, pode ser considerada como o prosseguimento de políticas (de governo, para a bacia do São Francisco) iniciadas no final da Segunda Guerra Mundial (1939/45).

No pós guerra observa-se o início de ações do governo federal em todo o vale do São Francisco, inseridas na visão [única] governamental de serem integrados norte e sul do país pelo potencial da extensa via navegável (2) oferecida pelo Velho Chico. Porém, com a instalação dos governos militares, em 1964, a integração Baixo-Médio São Francisco seria eliminada com a desativação e desmonte da estrada de ferro entre Piranhas (no alto sertão alagoano) e a então Jatobá (atual Petrolândia, em Pernambuco). O fim da linha férrea Piranhas/Jatobá é um dos sinais do início do declínio da navegação de fluvial de longo curso a partir da secular Penedo (3) à secular Penedo, Alagoas, já próxima da foz do rio, então porto de extrema importância para a cabotagem nacional e contando com linhas para outros países.

UMA ESTRUTURA BUROCRÁTICA PARA A LEGALIZAÇÃO DAS AÇÕES

A cartografia simples do São Francisco do final do séc. XIX, com amplos territórios “vazios”, aguardando a domesticação, se enquadrava na visão da “integração civilizatória” dos meados do séc. XX. Mapa: Acervo Bibliothèque Nationale de France.

Na montagem de uma estrutura burocrática para a aplicação dos inúmeros projetos estatais foram fundadas a CHESF – Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945), a CVSF – Comissão do Vale do São Francisco (1948), a SUVALE – Superintendência do Vale do São Francisco (1967) e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF, em 1974) (4).

Vejamos um detalhe pertinente do embrião legal e executivo do que seria destinado ao São Francisco que foi elaborado (e inserido no sistema legal brasileiro) quando da criação da CVSF – Comissão do Vale do São Francisco que, no artigo sétimo de sua formalização apresentava bem definidas as ações que seriam implementadas:

a) Organizar e submeter ao presidente da República para aprovação no Congresso Nacional o plano geral de aproveitamento do Vale do São Francisco, que vise a

1- Regularização do curso de seus rios;

2- Melhor distribuição de suas águas;

3- Utilização de seu potencial hidroelétrico;

4- Fomento da indústria e agricultura;

5- Desenvolvimento da irrigação;

6- Modernização de seus transportes;

7- Incremento da imigração e colonização;

8- Assistência às famílias;

9- Amparo à educação e saúde;

10- Exploração de suas riquezas.

Apesar de escopo com âmbito mais regional para a aplicação das políticas públicas, a questão da regularização do rio era prioritária pois se enquadrava de forma perfeita na visão oficial do flagelo, da catástrofe, que representavam as cheias naturais do São Francisco como descreveu em seu livro Lucas Lopes, ministro de Viação e Obras Públicas (em 1954 e 1955) e primeiro presidente da CEMIG – Centrais Elétricas de Minas Gerais que “os efeitos das enchentes começam a adquirir significado maléfico”.

É interessante notar que a visão determinando a subida das águas do Velho Chico como um desastre era claramente contrária ao que escreveu Donald Pierson, no início da década de 1950, em seu livro O Homem no Vale do São Francisco,

Para muitas pessoas que vivem ao longo do rio, então, a enchente do São Francisco é ocasião mais de prazer do que de temor ou de apreensão ou perda. A enchente aumenta as possibilidades não só das colheitas para os que vivem da lavoura nas margens do rio ou nas suas ilhas, mas também de um maior suprimento de peixes, para os que vivem da pesca ou fazem dela um complemento de seu meio de vida (…).

A análise de Pierson é precisa, simples e definitiva, permitindo uma observação de que, ainda no final do século XX, início do século XI, no Baixo São Francisco, seria o mote da população mais velha, que conhecera o rio livre de seus barramentos

“aqui tinha de tudo, antes das barragens, não faltava nada, as lagoas enchia, tinha o arroz, o legume, o feijão, o peixe, o camarão…agora não tem nada, o rio é um fiapo d’água, tá morto, o rio São Francisco…”

Confirmando que a cheia sempre foi, para a população ribeirinha, o evento básico, benéfico, para sua sobrevivência, elemento essencial para milhares de vidas que seria ignorado (e até o presente estigmatizado) na construção do projeto de domínio da água pelo setor elétrico.

A cronologia de intervenções na calha principal do São Francisco. Não estão representadas as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) em rios afluentes, na Bahia e Minas Gerais. Fontes: CHESF, MDR, DESO.

BARRAGENS, HIDRELÉTRICAS PARA O PROGRESSO

O início da construção da primeira unidade do complexo de Paulo Afonso (1954), pode ser identificado como marco inicial do avanço do setor elétrico sobre as águas do São Francisco a partir da fundação da CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco. Porém, sem reservatórios acumuladores de magnitude, seguindo o modelo fio d’água, o complexo que seria instalado em Paulo Afonso, BA, não provocaria alterações visíveis na dinâmica do Baixo São Francisco. As magníficas cachoeiras, no entanto, seriam apenas lembranças na memória ou em imagens capturadas: “o progresso tem seus custos”. Assim como as enchentes, paisagens naturais suprimidas ou adulteradas pelas intervenções também faziam, ainda fazem, parte de elementos impeditivos do progresso da nação, segundo a ótica de nossa sociedade. O pé calçando a porta, de qualquer modo, garantia os próximos passos.

Mais adiante, com a construção da UHE Três Marias (1957/1962), com o objetivo determinado de geração de energia hidroelétrica, o setor elétrico realiza mais uma etapa, pulverizando, gradativamente, o conceito inicial de uma “administração integrada, regional” do vale do São Francisco, inicialmente desenhada pela CVSF, inspirada na TVA – Tennessee Valley Authority, (5).

E o sertão virou mar…

A dificuldade na obtenção de fotos aéreas da região de Sobradinho dos anos 70 caracterizaria um apagamento da memória daquele rio de quarenta anos atrás? A cartografia oficial disponível, igualmente rarefeita, ainda dos anos 1960, parece simplória, o São Francisco correndo livre, comparada com imagem satélite atual, expondo o imenso reservatório de Sobradinho e das demais barragens. Cartografia IBGE | Imagem Satélite Google Earth.

É importante notar que, em 07 de fevereiro 1972, durante o governo militar de Garrastazu Médici, é lançado, através do decreto 1.207 de 07 de fevereiro de 1972, o PROVALE – Programa Especial Para o Vale do São Francisco destinado, segundo o discurso presidencial, a promover no São Francisco “os requisitos indispensáveis para atuar eficazmente como aglomerador de populações, desempenhando, dessa forma, em proveito da nossa gente, a função a que está predestinado” em preparo para o que seria, naquela década, uma das maiores movimentações de populações, em razão da formação do lago de Sobradinho. Para fechar o pacote, três dias após o presidente inaugura duas unidades da UHE Paulo Afonso III, em mais uma ação da “redenção sanfranciscana”.

NO CLIMA DA ÉPOCA: SOBRADINHO E A MÍDIA (AQUELA OFICIAL) DOS TEMPOS EM QUE O BRASIL IA PRA FRENTE

E se entrássemos no clima dos anos 70? A mídia da época, seja oficial – como as produções do Planalto – ou produzida pela imprensa, televisão e rádio observados e analisados a partir de nosso presente [vivendo com os resultados das ações da época] oferecem nos oferece um “mergulho temporal” no clima vivido no país do início da década de 1970. Uma viagem que pode contribuir para o melhor entendimento de como as políticas públicas – com a mão impositiva do governo militar e os segmentos que o apoiava – determinavam os rumos da nação e além de suas implicações nas vidas das populações (urbanas ou rurais) e efeitos nos territórios (a partir de interferências no meio ambiente, então algo considerado irrelevante).

Um exemplo para esta primeira abordagem sobre as transformações impostas ao São Francisco é a edição de 08 de fevereiro de 1972, o jornal carioca Correio da Manhã: em sua manchete, seu editorial e grande matéria (página 2) a exaltação ao lançamento do PROVALE e o início da redenção do São Francisco. Preservamos o periódico na íntegra para que leitores possam, através da gama de notícias, artigos, publicidades da época, ter mais informações sobre a vida no país no início dos anos 1970.

Em 1976, as obras de Sobradinho seguindo céleres, ocorre uma das tradicionais (e imperiais) inaugurações de etapas intermediárias de projetos governamentais. Evidentemente, prato farto para a imprensa/mídia oficial que produziu um vídeo sobre o evento. Na ocasião, contando com a presença de personagens do comando do país, o progresso dos trabalhos era celebrado ao som da dinamite explodindo as barreiras do atraso, libertando o rio (e seu povo) para o futuro pujante: “um espetáculo comovente”, de acordo com o então presidente da Eletrobras, Antônio Carlos Magalhães.

Enquanto naquelas brenhas domadas o Brasil seguia, oficialmente, de forma pra frente, no sertão em transe, em convulsão, milhares de pessoas (72 mil de acordo com dados de organizações sindicais rurais da região, 60 mil, segundo a CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) tinham seu destino selado: por imposição do governo federal, seriam removidas de seus lugares, rumo a futuro incerto, para a erradicação de populações na poligonal do reservatório da barragem de Sobradinho.
A desocupação compulsória do imenso território que viraria mar, talvez uma das maiores movimentações de população humana no país, transcorreria, em ambiente de oficiais concordância e calma produzidas pelas fontes oficiais, como um acontecimento longínquo, vago, sem maior interesse para o restante da nação.

Com os Impossíveis bradando o oficial hino motivador do também oficial alegre povo brasileiro – grotescamente infantil e imbecilizado, fadado ao folguedo de pular carniça, domado alegremente – para a caminhada rumo ao amanhã promissor: o país trilhava pra frente, tudo perfeito. Igualmente perfeito para o desenho do que seria o São Francisco, o pra frente apontava o descaminho de um projeto de ocupação e espoliação de seus componentes naturais, como o comprometimento de suas águas, território, e de suas gentes, respectivamente até a derradeira gota, derradeiro grão de solo, derradeiras pessoas felizes. Ôu, ôu, ôu, ôu, ôu, ôu, ôu!

Usina de Sobradinho – 1976 – Agência Nacional – Brasil Hoje n° 160 (1976). Arquivo Nacional.
“Esse é um país que vai pra frente” – Os Incríveis – Assessoria de Relações Públicas (ARP) – TV Cultura/Fundação Padre Anchieta

Sobradinho, pelo seu potencial de intervenção desenvolvimentista no rio, se encaixaria perfeitamente e com grande impacto promocional, na linha redentora das políticas públicas de então.  De forma deliberada, seria ignorado o passivo de vulto a ser gerado em todo o São Francisco a jusante, incluindo sua zona costeira (6).

A obra megalômana abriria o caminho para os sucessivos barramentos a jusante, como a finalização do complexo de Paulo Afonso, Itaparica, Moxotó e, finalmente, a UHE Xingó em meados dos anos 1990 que, com padrões específicos de operações moduladas, potencializaria o já grande passivo provocado pelos empreendimentos anteriores.

A ideologia de algo como “… livrar o então ignoto nordeste brasileiro [para uma boa parte do país] e sua miserável população, de sua sina de atraso e abandono: chegara a hora do progresso libertador rumo ao futuro pujante” teria, com Sobradinho, uma de suas coroações com a agregação de outras jóias/barragens que, com o saldo negativo de seus impactos, selariam a sentença final para o rio São Francisco e não resolveria, como testemunha o presente, o problema social e econômico de suas populações: o Velho Chico se curva ao oceano Atlântico em sua foz, onde populações entregues à própria sorte, se puderem, que comprem água potável. A do rio salgou.


Notas e referências

(1) – A construção de Sobradinho tem início em 1973, com o enchimento do lago iniciado em 1978 e finalizado em 1979.

(2) – Os cerca de 2700 km entre Pirapora, no Alto São Francisco e Juazeiro/Petrolina, respectivamente na Bahia e Pernambuco, no Sub-Médio, e finalmente o trecho a jusante, até a então Jatobá (atual Petrolândia, em Pernambuco). Jatobá, desde o final do século XIX, passou a ser conectada com o Baixo São Francisco através de linha de ferro ligando esta cidade a Piranhas, no alto sertão alagoano. Por sua vez, Piranhas era integrada por sistema de navegação de longo curso (4) à secular Penedo, também em Alagoas, já próxima da foz do rio, então porto de extrema importância para a cabotagem nacional e contando com linhas para outros países.

(3) A navegação regular de longo curso no Baixo São Francisco tem início ao final do séc. XIX, em modal com a construção da estrada de ferro Piranhas-Jatobá, PE, onde havia a conectividade com a linha de longo curso até Juazeiro/Petrolina e para além, até Pirapora.

(4) Pela lei 541, de 15 de dezembro de 1948 foi instituída a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), atuando durante o vintênio previsto pela Carta Magna. Este órgão foi sucedido pela Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), criada pelo decreto-lei 292, de 28 de fevereiro de 1967, uma autarquia pertencente ao Ministério da Integração Nacional. A Lei 6.088 de 16 de julho de 1974 criou a CODEVASF, já com este nome, então ainda restrita ao rio São Francisco e que hoje opera no vale do Parnaíba, estando vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional como empresa pública.

(5) Observar que as movimentações produzidas pelo interesse no São Francisco levaram, em 1949, o então presidente Eurico Dutra (1946/1951) juntamente com com o presidente da CVSF, coronel Berenhouser e uma caravana, a visitar a TVA de onde voltariam “fascinados” pelo sucesso do órgão, segundo os seus gestores. As impressões causadas, pelo órgão americano, no presidente brasileiro seriam fatores relevantes na implementação das ações da CVSF.

(6) Parte do litoral sul alagoano e todo o litoral norte de Sergipe tinham suas dinâmicas costeiras diretamente influenciadas pelo comportamento do São Francisco, em particular pelo aporte de sedimentos e de água doce nas cheias naturais.


Fontes

Acervo Arquivo Nacional

Acervo Canoa de Tolda – Atlas Halfeld

Acervo cartográfico IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Acervo Bibliothèque Nationale de France

Coelho, Marco Antônio Tavares – Os Descaminhos do São Francisco, São Paulo – 2005

Codevasf – Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba

FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco

Hemeroteca da Biblioteca Nacional

Le Monde Diplomatique Brasil

Na Veia do Rio (documentário) – Rieper, Ana; Paladina Filmes/Canoa de Tolda – 2001

Repórter Brasil

Suassuna, João – blog –


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