por André Aroeira | Piseagrama

Gritos de Alerta, desenhos de Davi de Jesus do Nascimento

Para o retorno de enchentes, corredeiras, peixes e plantas
aos rios represados por usinas hidrelétricas – essas promessas velhas de energia limpa cujos impactos são tão destrutivos quanto os de termelétricas movidas a combustível fóssil.


Foz do Iguaçu, 18 de maio de 2053. Ela prende a respiração ao ouvir o pequeno clique. Segura até a explosão. Um pequeno filete começa a desaguar a energia potencial que por tanto tempo foi motivo de orgulho. Não é mais. O lago podre de Itaipu, por sete décadas a antessala da maior usina hidrelétrica do mundo e verdadeiro monumento à engenharia humana, finalmente começa a se desfazer, autorizando o rio Paraná a mostrar sua verdadeira cara.

Tão caudaloso quanto o rio que renasce é o borbulhão que inunda o rosto de dona Amanda, acampada novamente às margens da barragem, como fizera há setenta e um anos. No longínquo ano de 1982, ela acompanhou seus pais e as primeiras aglutinações ambientalistas brasileiras que se reuniram para velar a destruição das Sete Quedas do rio Paraná.

Naquele local, turbilhões magníficos e arcos-íris duradouros formavam um espetáculo natural que muitos consideravam tão impressionante quanto as quedas das Cataratas de Iguaçu, ou “a oitava maravilha do mundo”. Certo Almirante Belart costumava dizer, à época das discussões sobre o projeto da Usina de Itaipu, que aquela era “uma beleza natural criada por Deus e que o homem jamais teria condições de realizar”. Pregou entre seus pares por algum tempo, mas acabou vencido: os militares do governo não abriam mão de construir a “maior usina do mundo”, o que os fez rejeitar os projetos alternativos que poupavam as colossais cachoeiras.

Por milênios, o som da água passando pelas Sete Quedas do rio Paraná havia encantado os povos Avá-Guarani e os colonizadores espanhóis e portugueses. Ao final de 1982, foi lentamente silenciado até que só se podia ouvir a marchinha “Pra frente Brasil” a ditar o ritmo das obras. O último lamento das cataratas naquele final de 1982 reuniu cerca de 3 mil pessoas em plena ditadura militar, o que é considerado até hoje um marco na mobilização pela natureza no Brasil. Inúmeros rios brasileiros padeceram naqueles anos e ainda estavam por padecer, um a um, com a ocupação desenfreada do território, as mudanças de uso do solo sem qualquer vestígio de ordenamento e o desmatamento das mais pujantes florestas que o planeta já teve.

O avançado da idade não permite que Amanda ouça bem as explosões e ela se concentra nos próprios pensamentos. “Um rio barrado é um rio morto”, ela não tem dúvidas. Pode ser fonte de água e de comida, pode gerar energia, pode ser navegável, oferecer recreação e permitir atividades espirituais, pode cuidar de suas espécies e florestas associadas, pode dessedentar humanos e outros animais e oferecer toda a infinita sorte de serviços ambientais; mas não pode fazer tudo ao mesmo tempo.

Ela conheceu o rio Paraná antes que ele sofresse seu derradeiro golpe, como os beiradeiros conheciam o Xingu antes de Belo Monte, e como os últimos índios isolados do mundo um dia conheceram o rio Madeira. Nenhum deles reconheceria os mesmos rios no Brasil de 2019. Imagine um rio que corre solto. Gotas de água unidas pela força de uma tensão superficial que só um astronauta meio desastrado conhece em sua plenitude. Juntas e em movimento, as gotas formam uma massa viva de matéria inorgânica que carrega o solo, partículas, fragmentos de florestas e até sujeira e poluição. Um exame rápido permite, como num exame de sangue, o diagnóstico preciso de tudo o que acontece ao seu redor e a montante. É o sangue das florestas.

Os peixes consomem a matéria orgânica do rio, despejando mais matéria orgânica em seu caminho: restos de alimentos, ovos e larvas. Alimentam-se do rio e o rio alimentam. Os peixes também são o rio, do rio dependem e do rio cuidam como qualquer um cuida da própria casa. Ora, há rio onde não há peixes? Há apenas um punhado de água, mas nunca um rio.

Peixes também carregam sementes de frutos que lhes são lançadas propositalmente pelas plantas nas margens. E, ao carregar sementes, muitas vezes por dezenas de quilômetros, se tornam agricultores, espalhando suas plantas prediletas por todo o rio. É uma parceria modulada por milhares de anos de experimento de tentativa e erro, até a sintonia perfeita. Imagine uma orquestra que ensaie sua apresentação todos os dias ao longo de mil anos – ou melhor, cem mil anos. Assim interagem os peixes e as plantas da margem dos rios.

Além de alimentarem os peixes em troca da dispersão de suas sementes, as plantas protegem o rio. Seguram a terra que poderia soterrá-lo e a força das enxurradas; criam microporos no solo que permitem a infiltração da água até o lençol freático, garantindo que o rio esteja vivo na época da seca; sombreiam as margens, amenizam o calor e ali lançam suas folhas, flores, seus frutos e galhos, criando ambientes propícios para o abrigo e o alimento de toda sorte de vertebrados e invertebrados. A mata ciliar tem o mesmo nome dos cílios que protegem nossos olhos. Um rio sem cílios é um rio com menos peixes, insetos, sementes. Com mais enxurradas e poluição.

As plantas também são o rio. E isso faz dos peixes plantadores de rios. Os insetos, as algas, os anfíbios e até as aves da beira são o rio. E o rio, para ser rio, precisa de espaço. Precisa extravasar para acomodar os volumes maiores do verão, invadindo as florestas na margem e as lagoas próximas à beira. Os grandes peixes do rio São Francisco aproveitam esse momento para alcançar essas mesmas lagoas, onde seus ovos têm mais chance de prosperar com tranquilidade e os filhotes nascidos no ano anterior aguardam o momento de ir ao encontro de seus pares.

O rio Amazonas invade mais de uma centena de quilômetros de floresta em suas inacreditáveis cheias e invariavelmente encontra mais de uma centena de quilômetros de floresta à sua espera, ofertando abrigos às criaturas aquáticas e suas necessidades, mesmo que sobre a terra. O rio carrega nutrientes arenosos desde as montanhas peruanas para fertilizar as infindáveis várzeas que são, no fim das contas, ele próprio. A vegetação controla a força das águas, permite a sua infiltração no solo, evita que escorram para mais longe do que deveriam. Protege do sol e do vento. Um ribeirinho sabe que sua mandioca crescerá duas ou três vezes mais rápido nesse solo sob o pulso da rica inundação.

O rio é o punhadinho de água que escorre, mas é também a enchente, é os peixes, é as plantas, é as corredeiras onde o homem gosta de fazer barragens, é o espaço que precisa para se acomodar e garantir o ciclo da vida que, enfim, o faz vivo. Sem vida, não pode ser rio.

A tentativa desesperada de restaurar os rios do Brasil, que já seria urgente nos dias de hoje, será feita com muito lamento, embora com esperança, em algum futuro que ainda não parece próximo. O que estará pensando o homem que apertar o botão que implode uma grande barragem? Talvez esteja tomado da mesma incredulidade com que condenamos hoje a política de Estado que aniquilou os indígenas por cinco séculos ou que escravizou negros por dezenas de gerações. Talvez nessa época os rios já sejam tratados como os seres vivos que sempre foram.

Uma barragem é a amputação de uma grande área de rio e algumas vezes é a sentença de morte de toda uma bacia. Nos menores rios do Sudeste e do Sul e até nos grandes como o São Francisco, o Paraíba do Sul e o Paraná, é comum ver uma sequência de barramentos cujos impactos se potencializam. A presença de uma barreira física afeta de maneira definitiva a dinâmica e os processos ecológicos no rio e seus ecossistemas associados, tanto em escala local, como regional ou global para a bacia.

Localmente, a interrupção do fluxo hídrico transforma corredeiras complexas e bem oxigenadas em ambientes lênticos, de temperatura estratificada, onde se acumulam poluentes e sedimentos. Espécies adaptadas ao ambiente original são rapidamente substituídas por espécies características de lagos, o que pode representar extinção local ou até global das espécies de corredeiras, como as que existiam na volta grande do rio Xingu antes de Belo Monte. A floresta ao redor é alagada permanentemente e morre, emitindo os piores gases de efeito estufa. Dependendo do projeto, esses gases podem contribuir mais para o aquecimento global do que uma termelétrica movida a combustíveis fósseis.

Em escala regional e global, tem-se em primeiro lugar a alteração do pulso periódico de inundação das florestas associadas às margens, o que prejudica processos ecológicos construídos ao longo de milhares ou milhões de anos. Ficam comprometidas a dispersão de sementes, a renovação dos solos de florestas, a ecologia das lagoas marginais e a própria sobrevivência das matas ciliares, que podem definhar simplesmente por não serem alagadas na época certa ou com o nível de água adequado.

Dentro d’água, as espécies maiores e mais importantes, como golfinhos, dourados e grandes bagres, têm sua movimentação limitada, o que pode isolar populações antes e depois do barramento, interrompendo seu fluxo gênico e tornando-as mais vulneráveis à extinção. Várias espécies sequer conseguem atingir a maturidade sexual se não forem forçadas a nadar contra a corrente, que deixa de existir, enquanto outras não conseguem acessar as lagoas em que se reproduzem por conta da ausência da inundação. Peixes como o surubim têm suas desovas perdidas e a reprodução comprometida porque, deixam de viajar centenas de quilômetros rio abaixo até assentarem em um local propício, como sempre ocorreu, e as desovas passam a ser retidas nos lagos das barragens, onde são predadas ou não encontram condições propícias para maturar e eclodir.

Quando se trata de barramento para energia hidrelétrica, não existe estratégia de mitigação ou seriedade no licenciamento ambiental que dê jeito: a escolha entre fazer ou não fazer o empreendimento se dá a partir do pressuposto de que a barreira artificial fará o rio perder suas espécies mais importantes em longo prazo. Por “mais importantes” entenda-se as mais valiosas para os pescadores e as populações locais e as espécies de topo de cadeia, cruciais para o equilíbrio ecológico. Se a bacia inteira estiver fragmentada pelos barramentos, a extinção pode deixar de ser de apenas uma população local, e passa a ser da espécie como um todo. A extinção local ou global acarreta impactos irreversíveis em cascata e sobre a teia alimentar e a saúde do ambiente. Um rio deficitário de suas espécies únicas ou mais importantes nunca mais será o mesmo.

Muitos outros processos físicos também são alterados de maneira dramática pelas barragens, comprometendo ecossistemas dezenas de quilômetros rio abaixo. Há, por exemplo, reduções drásticas no aporte de sedimentos e matéria orgânica, bem como alterações na força das águas, que passa a ser controlada remotamente por um operador guiado por gráficos de demanda energética em regiões a milhares de quilômetros de distância do rio. O São Francisco e o Paraíba do Sul são exemplos de rios que têm suas fozes cada vez mais invadidas por água marinha por conta da perda de vazão e de força.

O caráter quase definitivo de muitos dos severos impactos ambientais desses empreendimentos leva a uma pergunta quase obrigatória. Por quê?

Estamos no final da segunda década do século XXI e a geração de energia já é uma atividade com tantas alternativas – desenvolvidas e potenciais – quanto os possíveis usos de moléculas, fármacos e tecnologias contidos nas florestas virgens que sacrificamos em troca de energia. Por que trocar água, espécies, ativos naturais, culturas, serviços ambientais e um reservatório genômico único no mundo por algo que só precisaria de sol e vento para ser produzido?

Indo além, como pode um país que tem o maior potencial energético em qualquer fonte que se imagine apostar tanto em uma única forma de gerar energia? Ainda por cima, em uma fonte que nunca foi barata, nunca foi limpa e nunca foi renovável! Que soterrou o Parque Nacional das Sete Quedas, criou Balbina e destruiu as corredeiras do Xingu. Que só é viável – como o licenciamento ambiental de Belo Monte nos mostrou – quando ignora os custos ambientais mais elementares e condena milhares de brasileiros à mais desamparada miséria.

A década passada já viu alguns países passarem vários dias inteiros abastecidos apenas pelo vento ou pelo sol. A capacidade de armazenamento e o custo das baterias caem vertiginosamente ano após ano com perspectivas muito favoráveis para o futuro, reduzindo os custos de armazenamento. O Brasil tem uma matriz diversificada que permitiria uma transição bem planejada de longo prazo e sem sustos, se feita com fortes incentivos em descentralização e em diversificação de fontes, abrindo mão das obras megalomaníacas concebidas em porões militares durante os piores dias de sua história.

Nos leilões do Brasil o setor eólico já apresenta os menores custos de geração mesmo sem os subsídios e incentivos que outras fontes recebem e gerando impacto ambiental muito reduzido. As placas solares de hoje já poderiam produzir toda a energia elétrica do país se cobrissem uma área ínfima do território, equivalente a 10% do Estado de Sergipe. Ou uma vez e meia o lago podre de Itaipu. O que estamos esperando para investir na transição?

Enquanto o mundo rico, nossos vizinhos Chile e Argentina e até a outrora vilã ambiental China se dão conta de que é mais simples, mais barato e mais inteligente fazer a transição para os renováveis e aumentar gradativamente a participação do sol e dos ventos, os políticos do Brasil sonham em cobrar royalties dessas fontes e ainda disputam a paternidade (ou maternidade) de nossa provável última grande barragem, a desastrosa usina de Belo Monte, no rio Xingu.

Pouco mais de uma década após investimentos horripilantes e após o sacrifício de inestimável patrimônio socioambiental para fomento de um modelo vendido como mais limpo e mais seguro, o Brasil viu aumentar cada vez mais a contribuição de fontes fósseis em sua matriz energética, juntamente com a incerteza de sua capacidade de gerar energia por fonte hidráulica. A falta de água nos reservatórios do país mais aguado do mundo já faz as térmicas serem consideradas o backup para os momentos em que as fontes classificadas como “limpas” deixam de produzir: a solar quando chega a noite, a eólica quando para o vento, e as hidrelétricas, nossas antigas baterias gigantes, quando falta água.

A boa notícia no horizonte é que parece haver o início da compreensão de que não existe água grátis, ainda que ela insista em cair do céu. Produzir água significa expandir as áreas protegidas sobre áreas potencialmente “produtivas”, reforçar e fazer cumprir a legislação ambiental e investir maciçamente em saneamento e energia alternativa. Em algum momento nosso país vai precisar parar de desmatar, poluir e barrar rios, ou corre o risco de ficar sem água, alimentos e energia.

O enterro da volta grande do Xingu é provavelmente o enterro da fase de grandes usinas na Amazônia e no Brasil. As consecutivas crises do país e de suas grandes empreiteiras indicam o fim da linha para um modelo que perdurou por décadas: contratar a custos exorbitantes as empresas financiadoras de campanhas para destruir rios colossais com obras faraônicas.

Mas se essa fase acabou e a geração de energia no mundo segue de maneira resoluta o óbvio caminho do que é efetivamente sustentável, limpo e renovável, o que vai ser dos monstros de concreto projetados para manter nossos rios sob custódia e resistir às mais inimagináveis rebeliões que a natureza é capaz de produzir?

A descomunal ignorância humana no entendimento de processos ecológicos, das relações interespecíficas e da simples listagem das espécies existentes em uma área se manifesta na nossa impotência em restaurar ambientes naturais, o que é particularmente crítico em ecossistemas complexos como os tropicais. Como reconstruir algo que não se conhece?

Se a restauração de florestas é um desafio no qual começamos a dar os primeiros passos, a de rios é uma arte ainda por ser inventada. Simplesmente não sabemos o que vai aparecer quando toda a água escorrer e nem o que devemos colocar em seu lugar. Isso torna a decisão de fazer uma barragem ainda mais séria: é, em muitos níveis, a escolha por eliminar algo em definitivo em troca de um suprimento temporário de água ou de energia que poderia vir de outro lugar. Há aí algum paralelo com o que fazemos quando eliminamos povos indígenas e suas florestas para minerar ou criar bois. Se um dia alguém se arrepender, não haverá mais volta.

Ainda assim, poucos são os rios livres de qualquer barramento (para geração de energia, para captação de água ou para controle de vazão) no Sul e no Sudeste do Brasil. Para a geração de energia, o país tem cerca de 1.350 usinas entre as pequenas (Centrais Geradoras Hidráulicas), médias (Pequenas Centrais Hidrelétricas) e grandes (Usinas Hidrelétricas), sendo que a grande maioria tem barramentos. Esses barramentos deverão ser removidos algum dia por vários motivos: risco de acidentes, custos financeiros, fim da vida útil ou impactos ambientais.

Assistir ao descomissionamento – o termo técnico para remoção – de barragens, procedimento que já é popular em países europeus e nos Estados Unidos, passa aos amantes de rios a mesma sensação de alívio e liberdade que assistir à remoção de um pedaço de plástico da narina de uma tartaruga-marinha. Vídeos que mostram uma dam removal (ou remoção de barragem) são bem populares na internet, o que também se explica pela complexidade técnica da operação, que pode ser descrita como um gigantesco processo de construção de trás para frente. Metro por metro, a coluna de água precisa ser liberada de forma cuidadosa e planejada, evitando impactos aos ambientes e às atividades econômicas estabelecidas a jusante.

Uma remoção bem-sucedida é aquela que restaura o ambiente original da melhor maneira possível e pode demorar tantos anos quanto a própria construção do empreendimento. Quanto maior o rio, maior o barramento e maior é o desafio em liberar a água sem que a remoção se pareça com os horripilantes rompimentos de barragens de mineração que testemunhamos recentemente no Brasil.

Um ponto crítico é o manejo dos sedimentos, o que em grande parte guia a cuidadosa desconstrução. Durante toda a sua vida útil, reservatórios acumulam dezenas de metros de sedimentos que se depositam no fundo dos lagos junto com outros materiais, como lixo e troncos de árvore. Quando liberados em grande quantidade, podem literalmente soterrar e arrastar os micro-hábitats estabelecidos rio abaixo, que são fundamentais na dinâmica ecológica em maior escala. Alguns elementos químicos que estão em concentrações muito grandes após décadas de acumulação podem ainda ser tóxicos para algumas espécies e causar estrago significativo.

Experiências bem-sucedidas com o salmão nos EUA envolveram o resgate dos peixes abaixo da barragem para posterior soltura e o acompanhamento cuidadoso de seu restabelecimento. Para espécies que não existem mais no ambiente, é preciso ter a sorte de haver documentação de sua existência no local antes da implementação da barragem (o que não é simples para construções que podem ser muito antigas) e de ainda existirem em algum outro lugar para que sua translocação possa ocorrer. A reintrodução de espécies ou mesmo o repovoamento das que remanesceram em baixa densidade também ajuda na restauração física do ambiente, na medida em que elas revolvem o substrato, movimentam partículas, cavam tocas e restabelecem relações com os demais moradores.

As condições físicas do rio próximo à barragem e ao longo de toda a sua extensão também merecem um trabalho cuidadoso. Árvores e gramíneas plantadas vão estabilizar as margens à medida que o lago seca e as expõe. Em maior escala, uma dramática alteração dentro e fora do rio se dá pelo restabelecimento da dinâmica natural de fluxo hídrico que restaura o trânsito de sedimentos finos, antes represados. Esses sedimentos são cruciais para o estabelecimento dos organismos de base da cadeia trófica e, por serem carreados pela correnteza e terem sua reposição impedida pelo barramento, em geral inexistem nos trechos a jusante das barragens por toda a vida útil do empreendimento. A dinâmica restaurada dos sedimentos também impacta radicalmente a foz, principalmente no caso de barragens situadas próximas a ela, ou que são muito grandes ou, ainda, em rios com alta carga de sedimentos.

A remoção da barragem no rio Elwha, nos Estados Unidos, levou a uma completa transformação desse ambiente pela recuperação do aporte de sedimentos e nutrientes e pelo aumento da força das águas, o que pôde ser acompanhado por imagens de satélite. Em poucos anos, a foz teve grande aumento na complexidade de hábitats, viu praias, manguezais e campos de algas se formarem e vivenciou o renascimento de um delta arenoso que estava desaparecido havia um século. Esses hábitats são cruciais no fornecimento de abrigo e alimento para várias espécies de invertebrados filtradores e de peixes, principalmente em suas fases larvais e juvenis, favorecendo a sua reprodução.

Em Elwha, o monitoramento contínuo documentou o restabelecimento espontâneo de animais importantes para a dinâmica ecológica e a economia, como espécies de salmão que voltaram a utilizar o rio para alimentação e reprodução após décadas de ausência. O monitoramento é crucial para a avaliação das estratégias de restauração, principalmente para entender os erros e acertos de uma atividade tão incipiente. O sucesso no restabelecimento de espécies e funções ecológicas só poderá ser verificado após muitas décadas – tempo que os nossos rios não podem esperar no processo contínuo de decaimento em que se encontram. Até o fim do século a restauração de rios será um gigantesco experimento a céu aberto.

As observações até o momento indicam que a natureza é surpreendentemente capaz de se virar se lhe é dada a oportunidade. Como em todo processo de cura, os relatos indicam um início de recuperação “feio” e doloroso, mas que aos poucos encontra um caminho próspero e apresenta resultados positivos em prazo relativamente curto – como os salmões de Elwha.

Apesar dos inúmeros benefícios, a decisão para uma remoção de barragem de energia não é simples. Nos países em que vêm ocorrendo remoções, a motivação tem sido principalmente a economia de recursos, com a adoção de fontes mais eficientes, ou o risco que estruturas muito antigas representam. Os ganhos ambientais também são frequentemente considerados na tomada de decisão, principalmente quando novas regras de gerenciamento ambiental são implementadas e exigem custosas adaptações à operação vigente.

No Brasil isso provavelmente levará algum tempo para começar a ocorrer porque ainda temos um portfólio reduzido de investimentos em outras fontes e andamos sempre às voltas com o risco de apagões (que a própria queda da produtividade hidráulica, aliás, vem ocasionando). O setor elétrico brasileiro é fortemente regulado, trabalha com contratos longos e o descomissionamento envolve grandes custos, tanto de engenharia e restauração quanto da eventual compra do próprio empreendimento, dependendo de como será a governança do fim da atividade econômica relacionada.

O melhor caminho no nosso contexto parece ser a remoção da barragem e a restauração do ambiente como uma etapa pós-operação do empreendimento, inserida no seu licenciamento ambiental. A regulamentação seria simplificada, mediante portaria e revisão de termos de referência, talvez até evitando a necessidade de legislação específica. Isso é feito, por exemplo, em atividades minerárias, em que as empresas são obrigadas a aplicar protocolos de recuperação das áreas degradadas pela operação ao fim da exploração. Não se tem nada de concreto para barramentos de hidrelétricas até o momento.

Se há uma barragem candidata a descomissionamento no Brasil, é a Usina Hidrelétrica de Balbina, no estado do Amazonas, símbolo de ineficiência por conta da baixa produção de energia e da imensa área de floresta amazônica virgem que destruiu da pior forma possível. A hidrelétrica de Balbina foi construída durante a ditadura civil-militar e é associada ao extermínio de várias aldeias indígenas do povo Waimiri-Atroari, que historicamente habitava a região. Não houve qualquer preocupação do governo militar em suprimir a vegetação na área do reservatório, o que transformou seu lago numa sombria paisagem de troncos mortos que emergem de uma água esverdeada.

Estima-se que Balbina emita uma quantidade de metano tão grande que supere com folga a contribuição para o aquecimento global de usinas térmicas movidas a combustíveis fósseis. Seu projeto é tão ruim que serviu de mau exemplo na defesa de um plano para a construção de mais de uma centena de barragens na Amazônia pelo ex-presidente Lula: “Balbina nunca mais!”. Mesmo com a promessa, seu governo foi responsável direto pela construção de Belo Monte e várias outras usinas em território amazônico, algumas com impactos tão grandes que invariavelmente serão o mau exemplo das promessas de novos governantes.

Já se passaram dois anos e o entusiasmo de dona Amanda com o prognóstico que finalmente parece diferente para a natureza no Brasil ainda divide espaço com a inquietação que a acompanhou por tantas décadas e lhe fará companhia em seus últimos anos. Os pensamentos não mudam: “Como fomos tolos em deixar que ignorantes acabassem com nossas leis para então matar nossos rios, mesmo tendo conhecimento de tamanhos impactos! Que potencial teremos perdido e que nunca mais vai voltar? Meu Deus, como foram insanos aqueles tempos em que comprometemos os maiores rios do mundo, com uma biodiversidade tão valiosa e pujante, em troca de uma fonte de energia tão suja, transitória e que dava claros sinais de que estaria obsoleta rapidamente!”.

Mas ela está finalmente reconhecendo o rio Paraná da sua infância. Cada vez melhor. E também as paisagens. Dona Amanda sabe bem que o Brasil do futuro precisa ser cada vez mais parecido com o Brasil do passado.

Florestas seguem sendo recuperadas por toda parte onde haviam sido substituídas por pastos e voçorocas. Pequenos rios voltaram a correr livres e dão peixes onde só havia água suja e sucessões de barragens. Ressurgem as Sete Quedas, seu Parque Nacional e os turistas de todo o mundo. Assim como fez florescer o movimento ambientalista no Brasil, as Sete Quedas são hoje o símbolo maior de um fortalecido movimento brasileiro por rios livres. Vivos.

André Aroeira
Biólogo e mestre em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre pela UFMG. É especialista em políticas públicas para a conservação da biodiversidade e colaborador do The intercept Brasil.

Davi de Jesus do Nascimento
Artista plástico, performer e poeta barranqueiro curimatá, arrimo de muvuca e escritor fiado de Pirapora (MG). Participou da residência artística do Bolsa Pampulha 2018-19 e do Programa Convida no IMS-SP.

Artigo publicado originalmente em PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 14, página 20 – 29, 2020.


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