por InfoSãoFrancisco
Duas semanas de treinamento intensivo no alto sertão do Baixo São Francisco possibilitaram o compartilhamento de conhecimento, a melhoria de competências e também o desenvolvimento de tecnologias e processos de monitoramento de rios, tendo como objetivo geral o empoderamento social para ações coletivas e colaborativas de prevenção e preparo de desastres ambientais.
O povoado Ilha do Ferro no município alagoano de Pão de Açúcar, um dos principais centros de artesanato e arte popular no Baixo São Francisco, teve um movimento atípico entre os dias 27 de junho e 08 de julho passados. Ao invés dos tradicionais turistas circulando entre os diversos ateliês da localidade, a população da Ilha do Ferro acolheu o vai e vem de uma motivada equipe com mãos e cabeças carregadas de equipamentos de toda a sorte.
“eu não entendo nada do que esses rapazes dizem, mas é tão bonito o falar deles, gosto tanto de ouvir, mas que até que já tão falando uma coisinha da nossa língua”, diz animada Dona Vana, proprietária de uma das pousadas locais.
A movimentação na Ilha do Ferro foi o resultado da vinda da equipe do HOT – Humanitarian OpenStreetMap Team, parceria técnica e executiva do projeto MapSãoFrancisco, que veio ao Brasil para proporcionar à equipe nativa dias de intensiva capacitação teórica e aplicações práticas em campo.
As capacitações foram uma ação paralela ao mapeamento das lagoas e várzeas marginais intermitentes, primeira etapa do Subprojeto 01 – Mapeamento de Populações em Zonas de Risco de Alagamento – Baixo São Francisco, atualmente em fase final de validação das derradeiras lagoas e várzeas levantadas.
Marina Aragão, coordenadora do HOT para o projeto MapSãoFrancisco entende que a parceria com a iniciativa “tem sido uma interação única entre as relações internacionais, a tecnologia global e acessível e o empoderamento de populações locais e representou uma oportunidade pioneira e desafiadora, especialmente considerando a análise de um rio que tem uma representatividade enorme para a região Nordeste e para o Brasil.”
O curso teve como objetivo a formação de pessoas da região para a coleta de dados que possibilitarão, pela primeira vez na bacia hidrográfica do rio São Francisco, a modelagem digital de terreno colaborativa, de alta precisão. Com tais informações, a sociedade local poderá realizar o mapeamento de populações em zona de risco de alagamento e ainda tomar decisões que julgar pertinentes.
Essa abertura de horizontes foi possível pois, como prossegue Marina a capacitação “contou com a participação de uma equipe multidisciplinar, fundamental para encontrar as soluções para as problemáticas enfrentadas. O apoio da HOT, com a transferência de ferramentas e conhecimento técnico, certamente abrirá caminho para discussões mais assertivas sobre a realidade das populações que vivem e dependem do Rio São Francisco, além de ter demonstrado o potencial local para produção de tecnologias inovadoras.”
A avaliação positiva de Marina é compartilhada por Igor da Mata Oliveira, professor de Engenharia de Pesca da UFAL – Universidade Federal de Alagoas, parceira técnica e executiva do MapSãoFrancisco que entende que “o interesse e atenção da HOT foi motivador e comovente para nós desde o início. A organização em nenhum momento mediu esforços para viabilizar o projeto. No Brasil nesse momento, parceiros/ financiadores com esse perfil são muito difíceis de se encontrar – pesquisadores nas universidades e organizações não governamentais, sistematicamente sufocadas, lutando e utilizando recursos próprios por causas legítimas de interesse coletivo.”
Tecnologia, compartilhamento, criatividade
Seguindo uma programação que previa a gradativa imersão no conhecimento e uso dos equipamentos e sistemas, foram realizadas atividades como a montagem e operação de GPS RTK de alta precisão; técnicas e operação de varredura aérea com drone para captação de imagens de alta resolução; varredura aquática do rio (batimetria e relevo do leito) e também a medição da vazão de rios com o sistema OpenRiverCam (sistema aberto para a medição alternativa de vazões de rios).
Os trabalhos tiveram início pelo contato com os equipamentos que seriam utilizados, incluindo sua montagem, o que transformou a pousada/base de operações em um verdadeiro laboratório/oficina/estaleiro de tecnologias criativas avançadas e abertas.
As equipes naturalmente foram formadas e se voltaram à preparação e montagem de sistemas eletrônicos avançados, como os GPS de alta precisão de um lado; ao desenvolvimento e construção de um protótipo de um pequeno trimarã para receber o sistema de batimetria e varredura do leito do rio São Francisco; e também aos testes com drones de alto rendimento e sistemas de programação de voos de varreduras de terreno.
A efervescência coletiva foi marcada pela troca de experiências e pelo desenvolvimento de soluções locais, tecnologias e processos de dados que poderão ser utilizados em outros rios do Brasil e do mundo para atividades como o mapeamento colaborativo de populações em situação de injustiça socioambiental.
Tais pontos mostraram a competência do HOT na congregação de pessoas comprometidas “em adaptar e difundir tecnologia de ponta e acessível, de baixo custo, confeccionando equipamentos a partir de materiais acessíveis, com vistas à aplicação, popularização e empoderamento de mapeamento em áreas de isolamento sociopolítico e/ou socioambiental, atingindo resultados significativos. O ambiente durante o treinamento criado dentro e fora da equipe foi impecável. Corações sinceros se conectam e promovem mudanças positivas”, ainda considerou Igor da Mata Oliveira.
Conhecendo o terreno
Para proporcionar à equipe do HOT o conhecimento de particularidades da configuração física do Baixo São Francisco, antes das atividades em campo foi organizada uma navegação de reconhecimento entre a Ilha do Ferro e o povoado Barra do Ipanema, na foz do rio Ipanema.
No trecho de 44 km foram observadas e discutidas situações da configuração da planície de inundação que também são encontradas entre o alto sertão e a foz, o que permitirá, mais adiante, o suporte técnico sobre dúvidas de modelagem que possam ocorrer para a equipe do MapSãoFrancisco.
Para os trabalhos de campo diários foi selecionada como ADI – Área de Interesse, a faixa de território indo do povoado Ilha do Ferro e sua grande lagoa marginal, até a margem sergipana, incluindo a ilha do Belmonte e a lagoa marginal de cima do povoado Bonsucesso.
Como explica Carlos Eduardo Ribeiro Jr, da Canoa de Tolda, uma das criadoras do MapSãoFrancisco, a ADI – Ilha do Ferro, “não tão extensa e próxima da base, permite a aplicação das técnicas transmitidas às variadas situações da planície de inundação: aglomeração urbana, lagoas marginais ocupadas e não ocupadas, dois canais do rio. Essa variedade de casos permitirá treinamento e aprimoramento de nossa capacidade para a evolução do projeto ao longo do Baixo São Francisco.”
Uma vez a modelagem do terreno e as simulações de enchentes finalizadas, “o resultado será apresentado à comunidade para que a mesma possa conhecer e entender a gravidade da situação e aderir, se assim desejar, ao mapeamento colaborativo que permitirá a avaliação, pelas pessoas, dos rumos a seguir”, acrescenta Carlos Eduardo.
Novas tecnologias, integrações e soluções nativas (para o Velho Chico e o mundo)
No dia 2 de julho as chuvas no sertão de Alagoas provocaram cheias localizadas em praticamente todos os riachos intermitentes da região, provocando a destruição de estradas vicinais e isolando dezenas de povoados no município de Pão de Açúcar, incluindo o povoado Ilha do Ferro.
Conhecendo os rios
Aproveitando a situação de cheia no riacho Grande, a equipe do curso se deslocou para sua foz onde sua vazão foi medida com a utilização pela primeira vez no Brasil do sistema OpenRiverCam. É um sistema alternativo e simples de medição de vazões de rios que utiliza com referência para as análises objetos e movimento da água corrente que são filmados com uma câmera de vídeo simples. As imagens são processadas e sua análise (das partículas em movimento filmadas) definem a vazão do rio no momento da filmagem.
É a primeira vez que o OpenRiverCam é utilizado em rios de maior porte e havendo a validação do sistema pode ser uma grande alternativa [aos dados oficiais) para que a sociedade tenha em mãos a possibilidade de geração de dados tão importantes como as vazões de rios.
Outro teste importante e que produziu soluções locais foi o uso de um sistema de batimetria dito “de prateleira”. Para a determinação de batimetrias de seções do rio São Francisco e construção de uma grade de relevo do leito do rio, foi utilizado um sistema de sonar/GPS que apesar de voltado para o público não técnico ou profissional, demonstrou ser de grande precisão e com baixo custo. Esse sistema provocou, durante o curso, o desenvolvimento do protótipo muito simples de uma embarcação do tipo trimarã (três cascos) que recebeu o equipamento. Com o sensor do sonar, a bordo do trimarã, este era rebocado sobre a superfície da água de acordo com o plano de varredura definido para a realização da melhor batimetria.
Uma solução nativa
O saldo da experiência com o trimarã foi positivo, o que determinou o lançamento de um subprojeto para o desenvolvimento de dois protótipos, o que causou grande motivação, como bem ilustrou Igor, ao entender que “a cada projeto, essas técnicas e tecnologias podem ser aperfeiçoadas, e estamos felizes em vislumbrar possibilidades de contribuir nesse processo. Dessa forma, as melhorias efetuadas no Baixo São Francisco poderão ser replicadas em outras partes do mundo.”
Prestando contas
O treinamento foi encerrado com uma reunião que apresentou à comunidade da Ilha do Ferro o MapSãoFrancisco e as atividades realizadas no povoado durante aqueles dias.
Foi discutida a necessidade de conhecimento, pela sociedade, da situação de riscos de inundações aos quais as populações do Baixo São Francisco estão submetidas, sem que até hoje seja conhecido um Plano de Emergência integrado de prevenção, preparo e enfrentamento em caso de uma grande enchente.
Trocando ideias
Também foi tema das conversações que informações públicas e precisas possibilitam o engajamento popular para análise do quadro e tomadas de decisão, o que selou o compromisso do MapSãoFrancisco em retornar à Ilha do Ferro para a apresentação das modelagens e simulações finais daquela área.
“a coisa é séria, muito séria e as pessoas têm que participar de projetos como esse, do interesse da comunidade, pois se ficarmos esperando pelas autoridades, não dá certo não”, disse Dedé, artesão local e operador de uma embarcação de turismo.
Próximos passos
Nas próximas semanas está prevista a continuidade de levantamento das áreas restantes da ADI – Ilha do Ferro para a coleta de imagens que serão processadas para a modelagem digital de terreno. Esta, por sua vez, será a base para as simulações de vazões extremas do rio São Francisco e seus impactos sobre as populações inseridas na área de risco.
Também há a previsão de publicação de documentação técnica acessível para qualquer pessoa com informações técnicas e práticas para os levantamentos de terreno no Baixo São Francisco que poderão ser aplicadas em outros rios e regiões do Brasil. Já estão em elaboração materiais técnicos e didáticos em português, que serão disponibilizados gratuitamente online.
Uma longa rota aberta
As expressões de todos os participantes do treinamento ao final do curso são o testemunho da satisfação com a experiência, seus resultados e com as perspectivas possíveis para o futuro, como bem coloca Marina Aragão, quando diz que “ainda é um longo caminho ao qual apenas demos início. Do o ponto de vista do mapeio aberto e participativo, entendemos a necessidade de fomentar o engajamento das comunidades nesse processo. É muito importante pensar em projetos de educação de longo prazo, principalmente voltados à juventude, que sirvam de ecossistema para transformação social e inclusão tecnológica.”
“O apoio do HOT, com a transferência de ferramentas e conhecimento técnico, certamente abrirá caminho para discussões mais assertivas sobre a realidade das populações que vivem e dependem do Rio São Francisco, além de ter demonstrado o potencial local para produção de tecnologias inovadoras. ”conclui Marina
O MapSãoFrancisco é uma iniciativa da Canoa de Tolda e InfoSãoFrancisco que conta com a cooperação técnica do HOT – Humanitarian OpenStreetMap Team e da UFAL – Universidade Federal de Alagoas através de seu curso de Engenharia de Pesca com o IMAP – Laboratório de Investigação e Manejo da Pesca, em Penedo, Alagoas.
Fontes: MapSãoFrancisco; Canoa de Tolda; HOT – Humanitarian OpenStreetMap Team
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