por Apolo Heringer Lisboa

Manifesto publicado pelo autor quando da realização do XXIV Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos em Belo Horizonte, realizado entre os dias 21 e 26 de novembro passado.



Preâmbulo

Explicitar as diferenças de forma respeitosa para construir as convergências essenciais, e dar tempo a outras, com paciência, pensamos assim o sistema democrático de construção do país. Assim foi concebida a proposta META 2010 de renaturalização da bacia do rio das Velhas, ao final de 2003, interrompida contra a nossa vontade pelo governo estadual após 2010 inclusive não apoiando esticar a Meta até 2014 para completar os objetivos iniciais.

Além de outras dificuldades operacionais no âmbito da própria administração da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Neste período um fato novo relevante foi o tamanho do impacto surgido com as exportações para a China e o surto monstruoso da mineradora VALE comprando tudo e mudando radicalmente a configuração da mineração na região, recolocando o debate da questão hídrica.

SIMPÓSIO DA ABRH 2021

Abram o diálogo agora com quem questiona vocês de forma legítima. É nossa proposta! A região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), que hospeda o XXIV Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, se entrelaça com o Quadrilátero Ferrífero-Aquífero. Virou rotina o governo estadual decretar estado de emergência hídrica aqui, mas a crítica situação antecede os dois rompimentos das barragens de rejeitos ocorridos em 2015 e 2019.

Por aqui, pasmem, os rios estão “morrendo de sede”. A escolha de BH como capital de Minas na década de 1890 foi devido ao clima, posição geográfica no estado e à qualidade e abundância das águas. Mais recentemente a exportação de minério de ferro para a China atingiu os lençóis mais profundos desta região, desidratando os rios que nascem aí e abastecem a RMBH.

A situação exige um stop imediato dessa atividade nas áreas com riscos imediatos de rompimentos de barragens e fim definitivo de sua expansão na região. Fim de ciclo mesmo. A situação já é de calamidade no alto rio das Velhas e no Paraopeba, vale do São Francisco; e em diversos afluentes do rio Doce, como o Piracicaba, Carmo, Gualaxo do Sul e do Norte. Têm razão quem classifica a situação aqui como hidrocídio.

INDENIZAÇÃO DE R$37,6 BILHÕES

O principal responsável pelos eventos de 5 de novembro de 2015 em Bento Rodrigues (Mariana) e de 25 de janeiro de 2019 em Brumadinho, foi o Estado de Minas Gerais. Pesam omissões dolosas e licenciamentos indevidos envolvendo autoridades, conselhos de estado e sistema de fiscalização.

O rio Doce e o rio Paraopeba foram transformados em mar de lama e de sangue, atingindo respectivamente o Atlântico e a represa de Três Marias, com repercussão mundial.

E supremo paradoxo: um Estado réu ser beneficiado com 37,6 bilhões de reais de indenização para usar como bem entende. E prossegue ainda hoje seguindo na mesmíssima política, indiferente aos riscos iminentes tanto de desabastecimento da RMBH quanto de outros rompimentos de barragens.

Que mensagem estes atos passam à sociedade? Indenizar o responsável e deixar as vítimas – população e o meio ambiente – a ver navios?

COLAPSO MORAL DA POLÍTICA E SOCIEDADE CIVIL

Diante do colapso político, de conotação moral e técnica, da gestão ambiental envolvendo governantes e partidos políticos, a indignação tem ficado por conta de iniciativas da sociedade civil e científica, nas ruas, nos rios, nas serras. Em geral, pessoas não remuneradas e anônimas, aos milhares, sem privilégios individuais instituídos.

É de se esperar deste simpósio foco prioritário na proteção dos ecossistemas fluviais, serras e sinclinais ferríferos, com presença de pesquisadores com serviços pioneiros prestados à renaturalização dos rios, estudos de ecossistemas como o Cerrado e Mata Atlântica, que possuem perfil crítico das políticas governamentais e empresariais que descumprem as leis e o papel regulador que o Estado deveria assumir.

Nesta semana (da realização do simpósio – nota da redação) um fato histórico aconteceu: importante documento preparado pelo Observatório da Mineração da Grande Loja Maçônica de Minas Gerais foi publicado em defesa das serras da Gandarela e da Moeda, assinado pelo Grão-Mestre Sérgio Quirino Guimarães e pelo Secretário de Meio Ambiente, Sérvio Pontes Ribeiro da entidade, que fechou com a proclamação: “Um ciclo precisa ser encerrado, para outro virtuoso iniciar”.

Para quem quiser conferir e contatar ver o site www.glmmg.org.br e e-mail macons@glmmg.org.br

A VISÃO ESTATAL EM MINAS GERAIS

Vejam as estratégias e metodologias aplicadas aqui no gerenciamento do meio ambiente, nem chega a ser gestão. Coitados dos técnicos competentes e comprometidos! O Instituto Estadual de Florestas (IEF-Agenda Verde) tem competência de gerenciamento sobre os peixes vivos, na fiscalização e autorizações de pesca, etc.

Mas se forem peixes mortos, das mortandades nunca resolvidas e da poluição crônica, é atribuição legal da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM – Agenda Marrom, Poluição), o IEF não se mete.

Já os rios em si (abstraídos de peixes), é coisa do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM – Agenda Azul), que mede vazões e decide outorgas, um setor muito pressionado politicamente. O peixe é um indicador biológico fundamental que necessita de água em qualidade e quantidade. Mas no trabalho de campo se descobre trechos das bacias com outorgas legais muito acima da disponibilidade hídrica. Como pode isto acontecer e continuar assim? Cadê o IEF? Mas o IGAM, que tem a chave da “caixa d’água” não se interessa pelos peixes, isso é de outra seção.

O IEF, preocupado com os peixes sem poder respirar, com o rio poluído e secando, quer saber cadê a vazão ecológica e quem está poluindo, afetando a ictiofauna. E se forem os esgotos da Copasa abrangendo todo o estado? Enfim, tudo feito para não resolver nada, só se for com power point.

O quadro acima descrito é diretriz anacrônica da gestão atual. Vai contra a inteligência, a ciência e a transdisciplinaridade. Essa forma disjuntiva de pensar não para aí. A Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), 49% privatizada, opera por concessões municipais, não assumindo assim a lógica de bacia hidrográfica como unidade territorial de gestão. Nem prioriza a lógica sanitária da saúde pública e da saúde coletiva (conceitos diferentes mesmo: uma é prestação de serviços técnicos e assistenciais, outra um qualificativo ecossistêmico de qualidade de vida).

Esta “estatal” lança esgotos nos rios para depois tornar a tratar no outro ente federativo municipal logo abaixo, ignorando pessoas que moram no trajeto e os animais, disseminando doenças. Trabalhamos no conceito de água única e esse lançamento de esgotos nos rios promove doenças para outra estatal tratar, o SUS.

OUSANDO A REFORMA TERRITORIAL E CONSTRUINDO A REPÚBLICA HIDROGRÁFICA DO BRASIL

O Carnaval de 1955 imortalizou a marchinha “A água lava tudo”, canção interpretada por Emilinha Borba, composta por Jorge Gonçalves/Paquito/Romeu Gentil. Essa ideia é verdadeira, contribui com a ciência, pois o espírito do vale paira sobre as águas da bacia, são informações do território hidrográfico fluindo. Mostra a cultura dos seus habitantes, com sua mentalidade, seu modo de cuidar da terra, da produção industrial, do descarte dos seus lixos, esgotos, efluentes.

Por isso, demarcamos o território de bacia hidrográfica como referência geográfica fundamental da gestão do país, pelo papel metodológico e estratégico da água. Por isso é fundamental assumir os estados naturais, o território dos vales, e “distanciar” da lógica bairrista do município ou estado. Interessante tomar conhecimento da lei federal 8.171/91, da Política Agrícola do Brasil, em seu art. 20: “As bacias hidrográficas constituem-se em unidades básicas de planejamento do uso, da conservação e da recuperação dos recursos naturais”.

Esta lei precedeu em alguns anos a lei federal 9433/97. Os indígenas já tinham esta noção de pertencimento. Imaginem o Brasil administrado assim? Esta é a lógica para romper com séculos de arbitrariedades geográficas, desde quando em 1532 recortaram nosso território em 15 Capitanias Hereditárias, entregues a investidores privados europeus, na fundação da Empresa Escravocrata do Brasil com base na monocultura do açúcar voltada à exportação de commodities.

As fronteiras municipais têm essas heranças, passando pelas sesmarias e grandes fazendas. A República Hidrográfica visa dar concretude à proposta de gestão ecocêntrica do país abrangendo seu conjunto de atividades. É a reforma territorial base de um planejamento geral de todas as atividades no país, fazendo coincidir territórios de secretarias estaduais e ministérios.

A gestão econômica, social e política com essa base territorial comum confere concretude espacial e conceitual à administração pública, em bases ecológicas. É a grande reforma estrutural por fazer.

A ECONOMIA NATURAL (ECOLÓGICA) E ECONOMIA CONSTRUÍDA

A economia humana precisa se reatar com os padrões ecossistêmicos de sustentabilidade originários, e aprender com a economia natural ou ecológica. Ecologizar a economia é hoje questão de sobrevivência da humanidade.

O arquétipo bíblico registra nossa evasão da comunidade zooflorestal (Jardim do Éden) como rejeição cultural à natureza, na lógica binária excludente entre ser animal e ser cultural. Pela necessidade de afirmar sua consciência de si e do derredor, o Homo sapiens teria saltado da árvore taxonômica para negar a origem comum de toda a fauna, em nome de uma relação privilegiada e autoproclamada com um deus antropomórfico.

Esse foi o pecado original da história: a ruptura com a ecologia. Foi necessário? Provável que sim. Daí o escândalo que no século XIX Charles Darwin provocou na sociedade com sua teoria evolutiva biocêntrica-ecocêntrica. Interessante que tanto algumas linhas marxistas quanto de ideólogos liberais tratam a economia ignorando os princípios de sustentabilidade da economia natural, ou ecologia, que propiciou o nosso surgimento e desenvolvimento. A visão antropocêntrica é um equívoco análogo ao geocentrismo.

PATROCÍNIOS

Qual a prioridade desse simpósio? A resposta estaria demonstrada no perfil dos patrocínios? A água é um bem natural essencial à biodiversidade dos ecossistemas, e ela própria depende desses ecossistemas vivos.

A questão ecossistêmica estando em baixa significa que a prioridade são os pacotes tecnológicos ? Por exemplo, como tratar as questões atuais do rio São Francisco ou do rio Doce? Onde está a diferença entre mecenato e mercenato, no que se refere ao cuidado com as águas?

Sugerimos vejam no Google o convite do Simpósio, com a lista dos patrocinadores. Há um ufanismo descabido anunciando Minas como o atual “estado das águas”.

Como classificar empresas e governos que se empenham na obra abaixo. Como se posicionar?

A Quebec Engenharia está se instalando para erguer barragem de uma UHE na barra do Formoso, em pleno leito de “domínio federal” do rio São Francisco a 12 km a montante de Pirapora (que tal uma moção aí hem gente!).

Tal barragem transformará o leito do rio São Francisco em um grande lago de 312 km² chegando a Três Marias, num trecho declarado de preservação ambiental pela lei estadual n° 10.629 de 16 de janeiro de 1992.

O impacto negativo sobre toda a ictiofauna regional será enorme e irreversível, ela cortará a piracema, num retrocesso sem nenhum sentido em região que já está muito avançada na instalação de painéis solares fotovoltaicos, uma opção mais sustentável.

Será que teremos a triste sina de dizer adeus às lagoas marginais do rio São Francisco no norte de Minas, berçários dos peixes, e adeus ao rio Abaeté, adeus ao rio das Velhas, adeus à volta do surubim e dourado aqui no coração da RMBH entre Santa Luzia, Sabará e Belo Horizonte? Como reage a ABRH? Há expectativa de um posicionamento.

DA NATUREZA DAS SECAS E O VALOR DE MERCADO DA ÁGUA BRUTA

A escassez foi ficando crônica e agora estamos “acostumando” com a emergência hídrica aqui no Quadrilátero Aquífero. Esta é a cara desse progresso. Maior o PIB, menos água. A seca subterrânea, da opção econômica, vai transformando rios perenes em rios temporários. Desconsidera-se os múltiplos usos da água previstos em lei. O consumo abusivo da água-insumo de produção, sem pagamento do preço de mercado da água bruta, deixa sua marca.

Esta foi a política não só do Ricardo Salles. Aliás, a justa demonização política dele tem um viés: absolver outros que fazem a mesma coisa com mais habilidade. Não se trata ser contra governos e empresários que defendam os ecossistemas, os rios e uma produção sustentável e regenerativa. Estamos à procura deles para nossa lista de amigos.

Mas a escassez e as emergências estão puxando para riba as tarifas de água e de energia, com a população pagando mais. É a lei da oferta e da procura. Aí que pega! São tarifas crescentes para subsidiar os setores exportadores de commodities e outros grandes empresários produtores desta nova seca. Isto não é justo.

Esse controle foi costurado com a criação das agências dos comitês de bacias hidrográficas (associações empresariais equiparadas), que assumiram o controle dos comitês de bacia. Conseguiram com o poder financeiro do mercado do minério de ferro e com cooptações políticas, armas desproporcionais.

Os plenários dos comitês de bacia cumprem hoje apenas a função de legitimar essa política. As entidades empresariais entram no segmento sociedade civil com direito a voto, e articuladas os segmentos governamentais. E caso alguma decisão dos comitês de bacia contrariem esses interesses será derrubada na instância superior, seja COPAM – Conselho Estadual de Política Ambiental seja por quem está na titularidade do Meio Ambiente.

Isto não é gestão democrática prevista como compartilhada, descentralizada e participativa. Este ciclo está desmascarado.

ANALOGIA ENTRE HIDRONEGÓCIO E A MAIS-VALIA

Por que as empresas mais ricas do Brasil se recusam a pagar o valor de mercado da água bruta consumida em seus negócios, se este valor existe? E sabendo que estão transferindo a conta para os mais pobres? Basta ver no balanço contábil o valor apurado com o retorno financeiro das commodities exportadas.

Tentam iludir a população e até as mídias sem tempo para estudar os temas, dizendo que é escassez de chuvas, fazendo crer que se trata daquelas secas do passado, dos quadros de Portinari sobre os retirantes nordestinos. Estão escondendo o pulo do gato: a origem da alta lucratividade do setor agro silvo pastoril e minerário, além de tudo financiado por bancos oficiais e Ministérios.

Cabe aqui lembrar uma curiosa analogia histórica com a descoberta da mais-valia no século XIX, que ficava bem escondidinha no valor do contrato salarial. Ninguém entendia bem a origem do lucro, pensava-se que adviria da diferença entre o preço de venda e o custo de produção, ou até de bênçãos divinas.

Lembrando aqui: quando o empresário contrata a hora de trabalho de um operário vem embutido um plus no valor pago pela hora, algo além do custo dela em termos de mercado, para custeio da reprodução diária da vida do operário e sua família. Era algo elástico, a força de trabalho humana ia além do tempo socialmente necessário para se pagar, sobrando horas de trabalho gratuito por dia. O lucro viria certo ainda que a mercadoria fosse vendida pelo preço de custo! Ou seja, matematicamente o lucro é produto de trabalho não pago.

Conclusão: a força de trabalho operária contratada era a reencarnação metamórfica de antigos privilégios das sociedades escravocratas e das fundadas na servidão. A mais-valia não teria sido descoberta no século XIX não fosse aquele perspicaz e estudioso hebreu amorenado nascido na Alemanha, que dissecou o valor da mercadoria.

Poucos estão se dando conta do truque hidro lógico que está ocorrendo aqui. Não estão associando parte importante dos lucros com o não pagamento do valor de mercado da água bruta consumida na produção, com esse hidronegócio paralelo, que a nova seca veio revelar.

Além de concorrer para a morte dos rios e dos peixes, esvaziamento dos reservatórios hidrelétricos, aumento do valor das tarifas de água e energia. Com o povo subsidiando esse lucro. Esta seca ou desdita não pode, neste momento, ser computada a São Pedro, não é escassez de chuvas, nem é ainda o desmatamento da Amazônia e nem as mudanças climáticas.

Já são 60 anos da nova fase do agronegócio brasileiro que teve início no governo Geisel com o projeto com a JICA- Japan International Cooperation Agency , quem se lembra do protagonismo do Japão no Cerrado? É a seca do modelo econômico exportador de água que atinge o pequeno agricultor.

Não dá para engolir este engodo, vai contra a Constituição Federal de 1988 que garante os múltiplos usos das águas e a prioridade ao abastecimento humano domiciliar e produtivo assim como à dessedentação animal.

Cabe uma CPI nos estados e no Congresso Nacional. São retiradas abusivas e diárias dos rios e lençóis profundos, com outorgas oficiais sem condições técnicas e a tolerância política com as autorgas (as captações feitas na marra). É a seca sistêmica instalada, uma seca com chuvas! Se o ato egal está tendo a mesma lógica e força do ilegal que diferença faz para natureza se o que acontece é legal ou ilegal?

Estamos sendo um país marginal. Zero de respeito à conservação e preservação dos ecossistemas.

A água é um bem natural, público e essencial à vida, de uso comum a todos os seres vivos por herança da história natural. Assim como o ar que nos foi insuflado e a terra que sempre nos forneceu os alimentos em parceria solar, a nós e aos outros bichos. Será que querem nos cobrar pedágio para viver na Terra?

O MODELO AGÊNCIA PEIXE VIVO (AGB) , IBIO, E OUTRAS

Associações de empresários do agronegócio, mineração e indústrias estão sendo contratadas pelos governos como agências de bacias hidrográficas Brasil afora. Essas equiparações não são por acaso. É uma política deliberada, longamente perseguida pela CNI e a CNA.

Por que se interessam tanto em cuidar dos comitês de bacia? Cuidar do meio ambiente nunca foi o forte dos empresários nem dos governos.

Por que optaram por “pagar”? Por que se julgam no direito de não pagar o valor de mercado da água bruta e sim, voluntariamente, um valor simbólico?

Por que negar a relação direta da elevação das tarifas de água e energia de uso doméstico com esse não pagamento deles?

Por que se julgar no direito de ter o controle político-administrativo das agências, previsto em contrato? Para ter o poder de “precificar” essa água?

Qual foi o interesse do estado nesse contrato? Entregar a água? Diminuir investimentos e custos? Largar pra lá o “abacaxi”? Parece que foi um casamento com dote.

Benefícios mútuos na “cobrança”, privatização da gestão dos rios e das águas subterrâneas? Por que as agências e os plenários dos comitês não assumem com força a visão ecossistêmica da água, e priorizam tanto a visão de insumo?

O que a gente vê é despreocupação completa com a defesa dos ecossistemas aquáticos e da bacia, com foco na conservação dos rios e dos peixes.

A Carta de Princípios da gestão ecológica dos rios precisa ser assumida, tanto no CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco quanto no CBH Velhas – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. E foi aprovado, é documento oficial.

A versão de início era que a agência seria um braço executivo do comitê, com mero papel administrativo, mas não é bem assim, ficou muito poderosa, encorpada profissionalmente e remunerada ao contrário da diretoria dos comitês. É mais que um apêndice, é um rabo capaz de balançar um cão. Elas são poder.

Algumas picuinhas administrativas e formalidades administrativas ficam mais importantes que cumprir os conteúdos acima referidos e a mobilização social, puxando muito pelo lado burocrático com se fosse predomínio do aspecto técnico, mas na visão empresarial da Associação que a dirige.

E para garantir esse poder a tendência é reforçar nos comitês e outros conselhos de estado um sistema que garante maioria aos segmentos governamental e o empresarial. Imagine a situação agora: a água dos grandes rios brasileiros controlada por essas agências! Sem compromisso com a ecologia dos rios.

A Agência Peixe Vivo (APV), no âmbito da bacia do rio São Francisco, funciona como exemplo da gestão das águas no Brasil. Por cima delas, como ferrolho, vem a ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, a ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, o ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico e outras agências federais de água e energia de matriz hidrelétrica. A ANA transferiu para o orçamento da Agência Peixe (“Vivo ou Morto”?)/SF, pelo menos o fez até 2017, recursos advindos da transposição do São Francisco, no valor superior a 50% do que a APV recebe da “cobrança” na própria bacia.

Confira na revista UFMG /2017, n° 24, p. 205/237

O TRUQUE DO NÃO PAGAMENTO

O setores dos agronegócios e mineração consomem juntos mais de 70% do volume total dos usos consumptíveis. O consumo humano estritamente doméstico está por volta de 10%.

No uso hidrelétrico não há consumo, a água apenas move turbinas, os grandes impactos negativos são ambientais.

No início foi estipulado nos comitês de bacia preços básicos gerais iniciais de R$0,01 (um centavo) e agora, com 100% de aumento, R$0,02 (dois centavos) por mil litros de água (equivalente a 1m³).

Criaram planilhas e cálculos propositalmente difíceis até para matemáticos e estatísticos para levar aos plenários de comitês embutindo redutores de até 1/40 para o agronegócio, e gratuidades setoriais.

Por exemplo, o uso da água nos minerodutos não paga nem este valor pela água, pois seriam rios indo do interior ao mar, só que em tubos (artigo na revista Ecológico de importante consultora empresarial).

Visto não ter almoço de graça, o custo da água tornada escassa está sendo transferido aos consumidores domésticos. O mesmo acontece com a Transposição no Nordeste Setentrional.

Apolo Heringer Lisboa -Idealizador e fundador do Projeto Manuelzão


Fontes: o autor


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O artigo não exprime, necessariamente, a opinião do InfoSãoFrancisco.

Sobre o autor

Apolo Heringer Lisboa

Apolo Heringer Lisboa é idealizador e co-fundador do Projeto Manuelzão, da Faculdade de Medicina da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais