por Suzana Pereira

Em quadrinhos, as aventuras de Marino, canoeiro do rio São Francisco que enfrentou alemães e espiões na Segunda Guerra Mundial.
 


Contam que ele foi visto pela última vez numa pequena canoa, descendo a foz do rio São Francisco. Quem conta lembra também que na velhice ele jurava que nunca entraria em caixão. Esse desfecho enigmático é uma das muitas facetas que compõem, no imaginário dos ribeirinhos, a figura de Marino, o lendário canoeiro que levou a vida navegando nas águas do grande rio, entre Alagoas e Sergipe, na canoa de tolda que batizou de “Sonhadora”.

Reprodução: Edições da Canoa

É essa criatura mítica do baixo curso do São Francisco que emerge agora, muitas décadas depois, em “Marino da Sonhadora”, publicação inaugural do selo Edições da Canoa, criado pela ong Canoa de Tolda – que, entre outras iniciativas, em 1999 adquiriu e recuperou a canoa de tolda “Luzitânia”, tradicional embarcação sanfranciscana, tombada pelo Iphan em 2001.

Assim como na vida de Marino os fatos se misturam às lendas criadas em torno de sua pessoa, o livro mescla pesquisa histórica e ficção, numa narrativa de mistério e muita ação, valendo-se do fato de submarinos alemães terem torpedeado navios brasileiros na costa nordestina durante a II Guerra Mundial para dar vida ao protagonista, o incrível canoeiro que na década de 1940 acaba por interferir numa complexa operação dos países aliados para a captura de um submersível alemão, conseguindo afundar a embarcação na foz do rio.

A linguagem escolhida foi a História em Quadrinhos, que resultou perfeita para apresentar com liberdade a paisagem, as ações e os personagens, além dos diálogos – um precioso registro das falas coloquiais do povo do Baixo São Francisco, em transcrição literal. O rio de então, antes de qualquer barragem, era livre no seu fluxo, farto em águas e peixes. E a navegação, para transporte de cargas e passageiros, era intensa, com grande movimentação nos portos, como se pode ver na “floresta de mastros” reproduzida na rampa da cidade histórica de Penedo, em Alagoas.

O Baixo São Francisco dos anos 1940. Divulgação: Edições da Canoa

A ação se desenrola entre Penedo e a foz, com base numa meticulosa reconstituição histórica daquela época, que abrangeu desde a “carreira do rio de baixo” e a canoa Sonhadora (detalhadas na cartografia), até as ruas e casarões da cidade, a iluminação, os trajes, cortes de cabelo etc. A pesquisa sobre a presença dos submarinos alemães no litoral nordestino teve como fontes, além dos jornais de época e de livros, os relatos de velhos canoeiros e barqueiros.

“Contamos estórias com base histórica, e não podemos dizer muito o que é ou não ficção, a viagem é de cada pessoa”, explica Carlos Eduardo Ribeiro Junior, autor da pesquisa, textos, cartografia, projeto gráfico e storyboard. O material tomou a forma de HQ a partir do encontro com o desenhista Federico de Aquino, autor das ilustrações e coautor do projeto gráfico, que já desenvolvera um trabalho com embarcações junto à Associação Viva Saveiro, na Bahia, na HQ Bordejo.

O Marino que o leitor conhecerá na obra final é um jovem canoeiro, filho de marinheiro estrangeiro com uma alagoana descendente de africanos, exímio navegador que domina o francês, conhece o chinês e as artes marciais e é fascinado pela figura de Virgulino Ferreira – de quem se diz que foi afilhado e até que teria lhe presenteado com a canoa por causa de um serviço. Ele invoca “o capitão” nos momentos de maior perigo da história cabulosa: o “panavueiro”, o “aperreio medonho” que foi a explosão do submarino alemão na boca do rio.

A “floresta de mastros” na rampa de Penedo. Divulgação: Edições da Canoa

Nas suas andanças sob magníficos céus noturnos ou sob a claridade dos dias ribeirinhos, o herói transita entre a gente do lugar: além de canoeiros e barqueiros, também o pai de santo, o relojoeiro e mestre chinês, os amores, os catadores de caranguejo, as amigas prostitutas, o calafate, o armeiro, o cego trovador, a quituteira, o mensageiro. É essa rede de relações e de proteção que, ao lado da intuição, vai lhe permitir desvendar as tramas e o mistério – anunciados no jogo de búzios – que envolvem o militar alemão, a agente aliada infiltrada, os militares americanos e um major do Exército brasileiro.

A escolha de uma HQ clássica, em preto e branco, para desenvolver esse enredo, tem a ver com as histórias de vida dos autores. Carlos Eduardo, radicado nas margens do Baixo São Francisco desde 1997, é ligado em quadrinhos desde a infância: “Aprendi a ler quase que fora da escola, com os quadrinhos que meu pai trazia pra casa. Minha primeira leitura, em voz alta, para a família, foi um livro do Tintim, o Templo do Sol, do belga Hergé. Depois, na casa da minha avó materna, lia todas as tiras em quadrinhos dos jornais que ela comprava”.

Federico, que fez um mergulho na vida e na navegação do Baixo São Francisco antes de começar a criar as tiras, diz que, além da possibilidade de fazer um quadrinho embasado em pesquisa de campo, foi atraído por outra perspectiva: “Há muito me seduzia casar o preto e branco de um sistema de linguagens do quadrinho clássico dos anos 40 com a estética do preto e branco da xilogravura nordestina, um barato e um desafio e tanto”.

Divulgação: Edições da Canoa

A tiragem inicial de “Marino da Sonhadora” contemplará basicamente os apoiadores da campanha de arrecadação de fundos que viabilizou a edição e as bibliotecas de escolas públicas dos municípios do Baixo em Alagoas e Sergipe, além de alguns municípios ribeirinhos da Bahia e Pernambuco. No futuro, se os ventos soprarem a favor, uma nova tiragem e/ou uma plataforma digital poderão ampliar o universo do público leitor de ‘Marino da Sonhadora’.

Carlos Eduardo observa que o amplo acesso da população local, principalmente os jovens, à leitura do livro, é um propósito que esteve na origem mesmo do projeto editorial, como preocupação social: “Buscamos abordar, de forma cativante, sobretudo para o público jovem, aspectos da cultura e da história recente do Baixo São Francisco que ainda são muito desconhecidos e que, diga-se, não estão nos currículos escolares da região”.

Suzana Pereira – Jornalista

Ficha técnica

Formato – 22,5 x 30 com lombada quadrada

Capa – Tríplex C2S 300 g/m² com laminação fosca e verniz localizado, orelhas e impressão de conteúdo complementar nas faces internas

Miolo – 88 páginas papel pólen 90 g/m², impressão preto e branco, com encarte de 32 páginas em cor.

O livro está em processo de organização de distribuição e venda em todo o Brasil.

Preço público – R$ 60,00 (sem frete)

Para maiores informações: canoadetolda@canoadetolda.org.br


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