O Baixo São Francisco, antes da interferência das barragens regularizadoras, foi o berço de um modo de vida integrado aos ciclos naturais de cheias que produziu além de cultura, tecnologias específicas, possibilitava um sistema econômico com raio de alcance muito além da região.
Para um grande número de ribeirinhos do Baixo São Francisco, a visão do rio correndo livre, repleto de peixes esbrangindo das lagoas nas águas barrentas do verão e sem a influência da intervenção do homem através dos barramentos, é memória cada vez mais longínqua e, muito provavelmente, desaparecerá: o número das pessoas que nasceu e conheceu o Velho Chico antes da principal intervenção, Sobradinho, naturalmente se reduz e leva consigo uma importante bagagem – oral apenas – sem garantia de herdeiros, sem registros precisos e suficientes, sem interesse por parte de nossa sociedade.
A memória do São Francisco livre, ainda rio empurrando suas águas mar adentro, compreende diverso conjunto de elementos afetivos e históricos essenciais – tais como o passivo de suas águas rapinadas, de patrimônios natural e cultural destroçados e perdidos além de vidas definitiva e impositivamente mudadas, sem alternativas – que devem ser – sem qualquer espera – minuciosamente quantificados e contabilizados para a construção de um tão esperado pacto emergencial que conduza a ações voltadas para sua recuperação da bacia e de dias menos piores para suas populações.
Conhecer um pouco do que era o rio anterior aos barramentos e a vida que grandes populações ribeirinhas tinham antes das obras é fundamental: possibilita melhor percepção e entendimento da amplitude e gravidade dos resultados das intervenções gestadas ainda na primeira metade do século vinte com propósitos “redentores”. O resultado de tais políticas públicas seria a produção – com o crescente, estruturado e finalmente consolidado completo domínio das águas pelo setor elétrico – de um dos mais predatórios modelos de gestão (esta abrangendo não só as águas mas também usos e ocupações do território em articulação com instâncias políticas e sociais como municípios, estados e segmentos com interesses econômicos específicos) que nos lega, na primeira metade do século vinte e um, um cangaço de rio a caminho de seu término (1).
ÁGUAS QUE ADENTRAVAM O MAR
Recuemos ao início das investidas europeias nas novas terras achadas nestas bandas, onde cartografias e roteiros da época mostravam, de forma precisa, como o vigor das águas do então Opará nativo já era objeto de relatórios dos primeiros europeus aqui chegados no século XVI.
Em 1507, o cartógrafo franco alemão Martin Walseemuller produz o primeiro mapa do mundo onde não só temos os igualmente primeiros registros da denominação “America” para as terras encontradas, mas também do rio São Francisco apresentado como um caudal de grande porte.
Com a definitiva presença do São Francisco na cartografia mundial, o grande rio seria referência para as expedições europeias, pela facilidade de aguadas para abastecimento de suas embarcações, que observariam as naturais variações de suas vazões entre os períodos de cheias e estiagens.
A obra significou também a relocalização de quatro cidades: Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado, uma vez que suas sedes originais seriam submersas (3). As “cidades novas” foram construídas pela CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco, se juntando à redistribuição de terras como forma de indenização e compensação por parte das propriedades rurais
Relatos contemporâneos ao período colonial registram águas do São Francisco distantes quatro léguas da costa (cerca de 24 km). Um ótimo exemplo é o excepcional documento de Luís Teixeira, séc. XVI, Roteiro de todos os sinaes conheçimtos fundos, baixos, Alturas, e derrotas, que há na Costa do Brasil desdo cabo de Sãto Agostinho até o estreito de Fernaõ de Magalhaes(“e” com til no original), o mais antigo [conhecido] roteiro da costa brasileira vinculado à uma cartografia: um detalhado georelato e talvez dos mais importantes da produção quinhentista. A notícia registrada e associada à uma razoável cartografia demonstra como o caudal do São Francisco correndo livre e com sua bacia ainda sem a degradação do presente, eram sinais de fácil percepção para aqueles primeiros europeus.
Veja abaixo a transcrição do trecho do relato e imagem da página original do Roteiro:
“rio de Sam Francisco. o qual lança agoa muy turva ao mar três ou quatro legoas (como agoa do mõte) o q [1] serue bem pera boa conheçença de saber que esta em a tal paragem, he Rio que bem pode entrar nelle qualquer navio não de mto porte e ainda com algu [2] trabalho por deser a agoa mto rija em passando este rio está hu [3] que sae do rio de São Frco ao mar que se chama guaratubi,…”
Notas da transcrição paleográfica:
1 – “q” com til no original.
2- “u” com til no original.
3- “u” com til no original.
Na descrição de Luiz Teixeira, é importante notar a relevante citação “o qual lança agoa muy turva ao mar três ou quatro legoas”, que registra o alcance do avanço das águas do São Francisco além de sua barra. Sabendo que a medida tradicional da légua equivale a cerca de 6 (seis) quilômetros, temos que as águas doces do Opará atingiam – nas cheias que foram registradas pelo cronista – até 24 (vinte e quatro) quilômetros, garantindo o seguro abastecimento das embarcações, sem a necessidade de investir barra adentro.
CHUVA LÁ, ÁGUA CÁ
São inúmeras as diferenças físicas entre um rio livre (2) e um rio seccionado por barramentos, sendo que, no caso do Velho Chico, seu regime hidrológico único (envolvendo climas e meteorologias diversos entre a região da nascente, meio do curso e a de sua foz) criava condições muito particulares no seu trecho baixo que viriam a ser profundamente modificadas a partir da construção da barragem de Sobradinho.
O comportamento do rio, com suas dinâmica e interferências no meio físico e dos ecossistemas aquáticos (fluvial, ripários e costeiro, no caso do trecho baixo) seria definitivamente afetado com a regularização. Naturalmente, as mudanças também trariam grandes mudanças para as populações ribeirinhas. Estas, vivendo no Baixo São Francisco, até 1979/80, mantinham sistemas socioeconômicos regidos pelos ciclos naturais do rio com suas anuais cheias e os períodos de inverno regionais em alternância com as estiagens – “quando as águas voltavam” [para o canal fluvial].
Uma particularidade da bacia do São Francisco, é que o período chuvoso do Alto São Francisco (região fisiográfica da bacia hidrográfica hoje definida entre a divisa Minas Gerais/Bahia e o trecho até as nascentes na região da serra da Canastra, em Minas) ocorre entre os meses de outubro/novembro e março/abril, estação do verão padrão no hemisfério sul, que não costuma coincidir com a temporada de chuvas em outras regiões da bacia, principalmente as de clima semiárido, onde estão localizadas em sua maioria as usinas da CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (3).
Assim, para o Baixo São Francisco (região fisiográfica definida como o trecho a partir de Paulo Afonso, na Bahia, tomando uma área de Pernambuco e seguindo até a foz, nos estados de Alagoas e Sergipe), o período das cheias naturais ocorria no chamado verão, com as águas novas ou brancas atingindo o rio de baixo normalmente em novembro e, uma vez, chegadas as águas grossas, toldadas, essas permaneciam correndo (e enchendo as várzeas e lagoas marginais, zonas essenciais para a conservação da biodiversidade e formação de uma rica economia vazanteira) até o mês de março, podendo chegar a abril.
Estando claro que, desde o início da concepção conceitual a produção de energia elétrica já estava integrada ao projeto de Sobradinho, tomemos inicialmente o aspecto hidrológico muito especial do Velho Chico, com amplitudes de vazão consideráveis entre a estiagem e as cheias tendo sido uma das justificativas conceituais para a sua regularização. Esta viria como solução para a erradicação das consideráveis variações de vazões entre os períodos chuvoso e seco.
Tomando emprestada a visão da época, seria algo como a supressão do flagelo das cheias e das terríveis estiagens que condenavam populações às [promotoras do atraso] preciosidades da natureza que deveria, a qualquer preço, ser domada para o avanço do civilizatório processo de desenvolvimento sobretudo de seu sertão ignoto e hostil. No entanto, um aspecto básico, límpido, do funcionamento da sociedade ribeirinha foi, por inúmeras razões, ignorado: para as populações vazanteiras do Baixo São Francisco (aquelas que viviam a partir dos ciclos naturais do rio) as cheias não eram, nunca foram um flagelo. Esse chamado flagelo, por outro lado, foi alvo das políticas públicas de “redenção” do vale do São Francisco concebidas nas décadas de 1940 e 1950 (4).
“Urgia e urge subjugar as suas águas, regularizando a sua vazão e promovendo a sua utilização racional a fim de atender à multiplicidade do empreendimento: navegação e transporte, irrigação, produção de energia elétrica, reflorestamento e restauração do solo, colonização e industrialização”
Trecho da Mensagem do presidente da república, General Eurico Gaspar Dutra ao Congresso Nacional, abertura de trabalhos em 1948.
Completando a breve caracterização das particularidades hidrológicas do São Francisco, verifica-se ainda, no Baixo São Francisco – sempre se atendo ao panorama temporal do rio livre com suas cheias naturais – é a única região da bacia que conta(va) com duas situações de possibilidade de incremento de vazão:
a) As cheias no verão, a estação úmida – Com as cheias originadas no Alto São Francisco, podendo ser engrossadas com águas de trovoadas no Sub Médio (na região das sub-bacias do Pajeú e do Moxotó), no Baixo São Francisco (na sub-bacia do Ipanema), no período do verão,
b) E um eventual reponte no inverno, a estação “seca” para o restante da bacia – Situações meteorológicas com chuvas prolongadas de inverno que podem fazer os riachos de porte menor, boa parte intermitente em Sergipe e Alagoas, incluindo as várzeas das bacias dos rios Betume, Capivara, Gararu (Sergipe), e Itiuba, Boacica e Piauí (que forma, este último, a várzea da Marituba, em Alagoas, já bem próximo da foz).
Vazões da ordem de 8000/6000 m³/s (oito/seis mil metros cúbicos por segundo) eram verificadas nesses períodos, fazendo com que a água doce do rio avançasse diversos quilômetros dentro do mar na região da foz, como já vimos acima, na descrição histórica de Luiz Teixeira. A considerável penetração do rio no oceano Atlântico era situação que determinava a importante influência do Velho Chico na dinâmica da zona costeira em todo o litoral norte de Sergipe (pelos ventos dominantes do quadrante E e NE) e parte do litoral sul de Alagoas (no inverno, com os ventos de Sul).
Com o espalhamento da água doce, durante as cheias, em larga faixa da costa contígua à foz, embarcações de vários portes e navios na cabotagem aproveitavam a oportunidade para realizar suas aguadas, ou seja, o abastecimento de seus tanques.
Não deixemos de lembrar, para comparação, que as maiores vazões registradas no Baixo São Francisco, da ordem de 12.000m³/s foram observadas em 1949 (12.624,03 m³/s); 1979 (12.274,65 m³/s) (5) e 1992 (9.943,53 m³/s) (dados CHESF).
Em resumo: com Sobradinho, o ciclo hidrológico natural com as cheias anuais foi eliminado, ficando o trecho baixo do São Francisco submetido à (em 1979/80) vazão regularizada de 2.060 m³/s que, com a construção de mais barramentos (dentre os quais a UHE Xingó que tem um sistema operacional com variações horárias ao longo do dia insustentáveis tanto para a vida humana ribeirinha como para os ecossistemas), a crescente degradação ambiental de toda a bacia e a consolidação do domínio da água pelo setor elétrico, nos trouxe, em 2017, a prática de vazões de Xingó com o valor de 550 m³/s.
Fisicamente, o São Francisco livre tinha, sempre nos atendo ao Baixo São Francisco, sua planície de inundação (6) contando com inúmeras lagoas marginais além de várzeas desde o alto sertão, (região de Pão de Açúcar em Alagoas, e Poço Redondo e Porto da Folha, Sergipe) até sua foz que desempenhavam o insubstituível papel de serviços ambientais para os ecossistemas aquáticos.
Nessas lagoas e várzeas, nos períodos de cheias, ocorriam posturas de considerável número de espécies que contavam com a segurança e características ideais de temperatura de água, oxigenação, para sua reprodução.
Na região da foz, interagindo com a rede de canais, brejos, apicuns e manguezais estuarinos, o São Francisco também propiciaria condições perfeitas para a biodiversidade dos ecossistemas tanto fluviais como oceânicos, que da boca do rio, em direção ao sul pelo canal da Parapuca até a barra das Araras (a mais ao sul das barras móveis do estuário), tinham vasta região para seus diversos períodos de reprodução e postura.
Em resumo: com a regularização as lagoas marginais não mais puderam receber água sendo que as várzeas mais próximas à foz, tiveram situação de inversão, tendo seus níveis de espelho d’água mais elevados durante o período de inverno no Baixo São Francisco. Também a região do canal da Parapuca não mais contou com o imprescindível aporte de águas doces em grande quantidade durante os verões, fator que equilibrava as características físicas, químicas, de turbidez da água, essenciais para o equilíbrio da biodiversidade de suas espécies.
A ECONOMIA VAZANTEIRA
As características hidrológicas favoráveis encontradas no Baixo São Francisco somadas à pujança do rio pleno em seus ciclos naturais viriam, sobretudo a partir do final do século XIX, a ser o fundamento de uma intensa (generalização que, neste momento, não adentra situações de equidade na distribuição/participação de renda nos/entre os diversos grupos sociais da região) economia agrícola vazanteira (associada à pastoril) onde as lagoas marginais foram a base física indispensável para a manutenção de tais atividades.
Distribuídas em ambas as margens do Baixo São Francisco, entre a Boca do Saco, no alto Sertão, e a região da foz, as lagoas marginais e várzeas (7) – zonas baixas inundáveis componentes de planícies de inundação de sub-bacias de afluentes em ambas as margens eram alagadas nos períodos das cheias cíclicas, criando, com a baixa das águas, extensas zonas recobertas de rico material orgânico: os lameirões.
Também, e anteriormente ao uso de práticas humanas de agricultura em maior escala, os sistemas de lagoas marginais e várzeas eram o berço natural da biodiversidade da fauna aquática: naquelas magníficas áreas molhadas ocorria, além da região estuarina (que abrange o outrora rico sistema de manguezais e apicuns do canal da Parapuca e as barras do sul).
A vida de todas as populações no Baixo São Francisco seguia regimes naturais do rio, tão simplesmente. Grandes cheias, grandes produções, mesas fartas (ainda que com pouco dinheiro, “mas não faltava nada” (8). Esse sistema regido pela natureza dos ciclos do rio produziu inúmeras manifestações culturais tendo lagoas, lameirões, várzeas, plantios de arroz, canoas, navios, como referência que eram “botadas para fora” através de magníficas cantigas e trovas dos chamados “batalhões de arroz’. (9)
Com a agricultura de vazante largamente praticada nas dezenas e dezenas de lagoas e várzeas, o Baixo São Francisco foi, até a regularização, um significativo produtor de alimentos não só para os mercados locais e regionais, mas também para outras partes do Brasil.
Assim como aconteceu durante a ocupação holandesa no nordeste no século 17, com Penedo elevada à condição de cidade planetária (10), veremos, na primeira metade do século vinte e no início da segunda, e graças à intensa atividade agrícola e de indústria derivada (fábricas de juta, benefício de arroz, algodão) que a cidade alagoana voltaria a ser o porto de entrada e partida da intensa cabotagem para portos do norte e do sul do país e mesmo atendendo a linhas de navios transoceânicos. Ao mesmo tempo, Penedo permanecia como cidade tronco para a navegação fluvial de longo curso até Piranhas, fazendo a conexão, via estrada de ferro, com as brenhas “para riba das cachoeiras”.
CANOAS, NAVIOS, BARCAÇAS E TRENS
Com grande movimentação do conjunto de atividades socio econômicas em todo o Baixo São Francisco e demais regiões (origens e destinos relacionados e vinculados nesse sistema), bens, produtos (animais, vegetais, fabris), pessoas, necessitavam de deslocamento – de e para a região – à altura da demanda, o que produziu, de forma natural, a consolidação da navegação fluvial de longo curso entre Penedo e a cidade de Piranhas.
Navios a vapor, desde o final do século XIX (11), integravam o modal ferroviário que ligava a sertaneja Piranhas (no alto sertão alagoano do baixo São Francisco, a jusante das cachoeiras de Xingó) a pernambucana Jatobá (hoje Petrolândia), em Pernambuco.
De Jatobá, o viajante tinha a possibilidade, novamente por via fluvial, de chegar até Pirapora, no Alto São Francisco e de lá, por trem, atingir as regiões sudeste e sul do Brasil. Havia ainda a possibilidade de adentrar para oeste, a partir do porto de Barreiras, no alto rio Grande, oeste da Bahia.
A linha fluvial de longo curso no Baixo São Francisco era, por sua vez, alimentada por Penedo em razão de condição estratégica de como porto de origem e chegada de vapores das cabotagens nacional e internacional e também daqueles que atendiam a portos estrangeiros tanto na América Latina como também além Atlântico.
Em paralelo ao sistema da navegação regular a vapor, de forma complementar, uma outra rede de navegação conectava com os troncos principais, levava e trazia bens e gente.
Barra fora, em geral pelo mar “de dentro” (12) centenas de embarcações cargueiras a vela, fluviais e oceânicas irradiavam e capilarizavam as comunicações e acessos em um sistema paralelo, servindo portos e barras de rios: dentre elas as barcaças(13) de dois e três “paus” – jargão embarcadiço para mastros evoluídas das sumacas (14) de tradição batava – que garantiam a Penedo a ligação com as costas leste e norte, que chegou a se estender até as Guianas.
No caso das navegações interiores as magníficas canoas de tolda e as chatas propiciavam as essenciais ligações entre cidades polo ribeirinhas (como Penedo, Propriá e Piranhas) com outras menores, além de povoados e localidades.
Este chamado “movimento” da navegação franciscana (aqui tendo como referência não só a fluvial, mas também as conexões para portos fora da região) teria, ainda que com grande atividade agrícola em todo o Baixo, sinais de seu declínio no final dos anos 50 e 60 do século passado (15). É o período do início da construção de uma base industrial nacional que, por razões de políticas públicas que não viam a navegação como alternativa para o país, seria estruturada no transporte rodoviário, ao invés do aquaviário (fluvial e marítimo costeiro de grande e pequena cabotagens).
O Baixo São Francisco, até então uma região regularmente ligada, através das águas doces do rio e salgadas do mar, com o resto do país e do mundo, seria, gradativamente, legado ao isolamento, uma vez que o sistema de estradas previstos nos inúmeros projetos desenvolvimentistas não concederam qualquer prioridade para estas paragens. Sem navios para qualquer lugar, e muito menos estradas e ferrovias (16) para lugar algum, de forma irrevogável estava condenada a logística essencial para o sistema econômico vazanteiro, que seria desarticulado mais adiante, com consequências óbvias para a região.
RUMO À DESINTEGRAÇÃO
A construção da primeira barragem do complexo de Paulo Afonso (1954), na Bahia, e da UHE Três Marias (1957-1962) em Minas Gerais, na década de 1950 seriam o alicerce para as mudanças ainda maiores já planejadas para a alavancada do São Francisco rumo ao que se chamava de progresso: o rojão ufanista do Brasil Grande dos anos 70 produziria a consolidação do projeto e início da construção da barragem de Sobradinho (17 ).
Com as vazões regularizadas a partir do trecho médio, os ciclos naturais do São Francisco seriam extintos para todo o sempre, deixando as lagoas marginais e a quase totalidade das várzeas secadas, improdutivas ou com produção precária, ainda que objeto de projetos emergenciais para seus usos. Seria a ruína da economia antes apoiada nas águas novas (18), toldadas, que enchiam as lagoas e, ao recuarem, deixavam os lameirões prontos para os plantios e o rio farto de peixes.
A contagem do tempo para a pá de cal que marcaria o fim do São Francisco correndo livre até a pancada do mar começava a contar.
Notas
(1)– Rios de curso livre (segundo a WWF – World Wildlife Fund) são rios que correm sem qualquer interferência de sua(s) nascente(s) até a foz, na zona costeira, em uma baía, ou confluência com um rio maior, sem encontrar reservatórios de represas, barragens hidrelétricas e sem o cercamento de diques ou aterros marginais. Um rio livre, ou segmento de rio livre ocorre quando as funções dos ecossistemas aquáticos e ripários (marginais) e seus serviços (ambientais) não são afetados por mudanças antrópicas na conectividade fluvial permitindo a livre troca de material, espécies e energia ao longo do sistema fluvial e além.
A conectividade fluvial abrange os componentes dinâmicos longitudinais (ao longo do canal fluvial), laterais (nas áreas das planícies de inundação), verticais (águas subterrâneas e atmosfera) e temporais (intermitência e cíclica) que podem ser comprometidos por infraestrutura ou represamentos na calha do rio, nas linhas marginais ou na regularização; além das mudanças nas características químicas da água que levam a efeitos na ecologia alterada por poluição ou diferenças na temperatura da água.
Em estudo recente (2019), pesquisadores da Universidade McGill, no Canadá, e da organização WWF – World Wildlife Fund (Fundo Mundial para a Natureza), entre outras instituições, avaliou a conectividade de 12 milhões de quilômetros de rios em todo o mundo. O resultado da pesquisa conclui que apenas 21 dos 91 rios do mundo com mais de mil quilômetros de extensão que originalmente corriam livremente para o mar ainda o fazem hoje. Os rios que permanecem livres estão circunscritos a regiões remotas do Ártico, da Bacia Amazónica e da Bacia do Congo. O estudo estima ainda que existam cerca de 60.000 grandes barragens em todo o mundo, havendo aproximadamente 3.700 hidroelétricas, em construção ou planejadas.
(2) – A partir de conceitos do que são os rios:
DA CRUZ (1998, p. 15) diz que um rio é toda “corrente contínua de água mais ou menos caudalosa, que deságua noutra, no mar ou num lago”.
De forma semelhante, extrai-se do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 2460), que um rio é um: “curso d’água natural, mais ou menos torrencial, que corre de uma parte mais elevada para uma mais baixa e que deságua em outro rio, no mar ou num lago”.
Já na definição de rio apresentada pelo Dicionário Aurélio Eletrônico percebe-se um incremento com relação a anterior, pois considera o elemento vazão em sua acepção. Desta forma, retira-se deste que um rio é: Um curso de água natural, de extensão mais ou menos considerável, que se desloca de um nível mais elevado para outro mais baixo, aumentando progressivamente seu volume até desaguar no mar, num lago, ou noutro rio,
e cujas características dependem do relevo, do regime de águas, entre outras.
Sob a ótica do Glossário Internacional de Hidrologia um rio é um “grande curso de água que serve de canal natural de drenagem a uma bacia hidrográfica”.
Podemos entender como fim de um rio a situação de não mais chegada, de suas águas, até sua foz original.
(3) – Na época do projeto de Sobradinho, apenas Três Marias, em Minas Gerais e Paulo Afonso, na Bahia – esta ainda que em fase inicial do complexo de quatro usinas – saíra do papel, as demais UHEs – Usinas Hidro Elétricas estavam em fase de projeto ou de conceito.
(4) – No livro O Vale do São Francisco, Lucas Lopes cita que: “ “ A organização das ações de intervenção no vale do São Francisco era concentrada pelas diversas autarquias/órgãos criados para tal a partir dos anos 1940. Pela lei 541, de 15 de dezembro de 1948 foi instituída a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), atuando durante o vintênio previsto pela Constituição. Este órgão foi sucedido pela Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), criada pelo decreto-lei 292, de 28 de fevereiro de 1967, uma autarquia pertencente ao Ministério da Integração Nacional. Finalmente, já próximo do final da construção de Sobradinho, a Lei 6.088 de 16 de julho de 1974 criou a CODEVASF, já com este nome, então ainda restrita ao rio São Francisco e que hoje opera no vale do Parnaíba, estando vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional como empresa pública.
(5) – As enchentes de 1979 mostrariam a incapacidade de Sobradinho como barragem controladora de eventos desse porte, criando uma situação contrária ao esperado, com grandes defluências que foram desastrosas. A situação gerou, em 1980, uma CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar as causas e consequências das cheias do rio São Francisco.
(6) – Planície de inundação [Sin. planície aluvionar] – Planície desenvolvida sobre a calha de um vale preenchido por terrenos aluvionares e que apresenta meandros fluviais divagantes devido a baixa declividade do curso do rio que, em épocas de cheia, extravasa do canal fluvial e inunda a região. (CPRM) As planícies de inundação ocorrem, normalmente, no baixo curso do rio onde o relevo, mais desbastado pela erosão do que à montante, apresenta pequeno gradiente topográfico; em consequência, a energia fluvial é diminuída e não consegue carregar muito da carga sedimentar do rio que é depositada, colmatando o vale com sedimentos fluviais.
(7) – As lagoas marginais – número, área. Fonte. várzeas – número, área- zonas baixas inundáveis componentes de planícies de inundação de sub-bacias de afluentes em ambas as margens
(8)– Afirmação observada entre considerável número dos diversos entrevistados apresentados no documentário Na Veia do Rio – 2001 que reforçam a linha de que mesmo num sistema complexo de meação – repartição da produção entre agricultores e posseiros/proprietários de áreas em lagoas -, “naquele tempo não havia dinheiro mas não faltava nada, o rio dava tudo…hoje, o rio não dá nada, e tem que ter dinheiro para comprar tudo”
(9) – Veja documentário Na Veia do Rio.
(10) – A importância de Penedo, com a permanência holandesa no Baixo São Francisco no século 17, seria elevada à ordem planetária, algo que só seria igualado em meados do século 20, com o apogeu das navegações costeiras e de longo curso.
(11) – A navegação regular de longo curso no Baixo São Francisco tem início ao final do séc. XIX, em modal com a construção da estrada de ferro Piranhas, AL – Jatobá, PE, onde havia a interligação com a linha de longo curso até Juazeiro/Petrolina e para além, até Pirapora.
(12) – Zona marítima mais próxima da costa, na faixa, para o nordeste setentrional, entre o cordão de arrecifes a terra firme.)
(13) – Sumacas – Embarcação de origem holandesa, evoluída para a navegação nas águas costeiras nordestinas a partir da ocupação batava. Veja A Aparição da Sumaca, de Evaldo Cabral.
(14) – Barcaças – Embarcações costeiras com origem nas sumacas (ver nota 13 acima) Veja A vitória da barcaça, de Evaldo Cabral.
(15) – Nas décadas de 1940 e 1950, com situações ainda nos anos 1960, ocorre o formidável fenômeno da investida de armadores e canoeiros sergipanos e alagoanos que levam suas canoas de tolda – pelo trem da linha Piranhas/Jatobá – para o rio de cima, evento formidável que iria, definitivamente, mudar a navegação nos Sub-médio e Médio São Francisco (ver Do Remo aos Traquetes: As Sergipanas Subiram ).
(16) – Com os governos militares, um dos primeiros golpes que dariam início ao corte das comunicações e movimentações seria a despropositada desativação da estrada de ferro de Piranhas a Jatobá em 1964. Ver publicação Nos Trilhos da História – Um Ensaio Sobre a Estrada de Ferro Paulo Afonso.
(17) – A construção de Sobradinho tem início em 1973, com o enchimento do lago iniciado em 1978 e finalizado em 1979.
(18) – Situação/consequência prevista durante a gesta dos projetos de Sobradinho, o que provocou a elaboração de uma série de planos de emergência para “recuperação” das várzeas no Baixo São Francisco, de modo a compensar, artificialmente, com os perímetros irrigados, o fim das cheias que favoreciam o sistema vazanteiro.
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