Comunidade ribeirinha tradicional em Brejo Grande, SE, após capacitação, realiza mapeamento colaborativo de seu território pela primeira vez.
Localizado na foz do Rio São Francisco, o povoado da Resina é reconhecido pelas relações socioambientais (a atividade da pesca e da agricultura familiar), porém um território em conflito, cobiçado pela sua riqueza e diversidade ecológica somada com uma paisagem turisticamente encantadora.
Mesmo com seu reconhecimento pela Justiça Federal de Sergipe a população ainda sofre ameaças e invasões de uso irregular agropecuário. O modo de vida comunitário da Resina tem sido salvaguardado pelos projetos de manejo sustentável do Rio São Francisco – que faz a fronteira entre Sergipe e Alagoas.
No menor território estadual do Brasil um dos menores povoados luta para não ser expulso e para insurgir nos mapas disponíveis na Internet como modo de defesa do direito ao território.
Estudos sobre o território
Este mapeamento confirma informações das pesquisas científicas sobre violações de direitos humanos desta população ribeirinha e riscos iminentes de degradação do seu ecossistema de águas estuarinas pelo mal uso (do solo e da água) realizado pelos investimentos agropecuários (carcinicultura) que se instalaram estrategicamente nas terras da União (de modo juridicamente ilegal e ecologicamente insustentável) por reconhecer nas lagoas da Resina uma posição geográfica favorável e lucrativa em relação ao Rio São Francisco e suas potencialidades ecológicas.
Entretanto, também são apontadas as potencialidades do território da Resina para prática do turismo de base comunitária, a fim de não apenas indicar os conflitos, mas também alternativas para sua resolução a partir de arranjos produtivos com base em tecnologias sociais.
Apesar de Brejo Grande, SE, estar na fronteira com uma área de preservação ambiental (APA) do município de Piaçabuçu, AL, o turismo ecológico (realizado por agências de receptivo) não se utiliza deste lugar, o que por sua vez não configura uma alternativa de economia para a Resina, fazendo com que os seus moradores tenham ainda mais interesse na produção do seu próprio arranjo econômico, conforme já vem sendo desenvolvido.
O reconhecimento quilombola
O’Dwyer (2007) afirma que a iniciativa mais recente de reforma agrária para quilombolas ocorreu em 2003, quando um decreto federal estipulou normas para a regulamentação das terras quilombolas, delegando ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a competência governamental para o laudo técnico de titulação territorial.
Por serem terras de interesse da União, a área (em hectares) reivindicada pelos habitantes da Resina, insere-se no decreto federal nº 4887, de 20 de novembro de 2003, especificamente no artigo 10 da lei: “Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagoas, o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão medidas cabíveis para a expedição do título”.
Becker (2016) reafirma que de acordo com depoimentos de entrevistas com os moradores mais velhos do povoado Resina, o território tem sido disputado desde a sua ocupação.
A partir de 1940 o lugar foi transformado pelo trabalho dos “meeiros”, agricultores que dividiam os lucros com um “dono da terra” por onde se desenvolviam as plantações de arroz em lagoas que se formam no local. Ainda de acordo com esta pesquisa, atualmente a Resina convive com diversas violações dos direitos humanos, como o acesso regular da população à água potável.
Em 2008, teve início o processo de delimitação do território da Resina pelo INCRA, com a formação de uma comissão multidisciplinar para a realização do relatório técnico.
Dois anos depois, em 2010, a Justiça Federal de Sergipe reconheceu a área como pertencente à União e confirmou o laudo da Resina como terra tradicionalmente ocupada por famílias quilombolas, “autorizando o INCRA a cercar uma área de 174 hectares” (BECKER, 2016, p. 178).
Conflitos locais pelo território
Em junho de 2012, quatro anos depois do início de regulamentação do território quilombola, apenas as famílias da comunidade da Resina (que integra o território com Brejão dos Negros, a 8 km) tinham colhido e comercializado 2.340 sacas de grãos de primeira qualidade.
No entanto, desde abril de 2013, a comunidade voltou a enfrentar problemas legais de uso do território. “Moradores receberam um aviso de reintegração de posse da sede da Fazenda Capivara, onde se localiza a maior parte das lagoas que utilizavam para a plantação de arroz” (BECKER, 2016, p. 179). Em 2017 esse quadro de conflitos ainda não apresentava uma solução definitiva e a população local segue em vulnerabilidade contando com apoios de órgãos públicos para garantia de seus direitos.
O Ministério Público Federal de Sergipe, vem atuando desde então de modo fiscalizador, preventivo e integrado nos pontos de conflito do território estadual.
Outros trabalhos de educação ambiental continuada são desenvolvidos na Resina pelo Programa de Educação Ambiental em Comunidades Costeiras (PEAC), também vinculado à UFS.
Metas do mapeamento colaborativo da Resina
Projetos como este revelam que a ligação da população humana com o ecossistema estuarino do Rio São Francisco está além da apropriação econômica, pois o território representa para essas famílias a fonte de subsistência e de onde perpetuam saberes e fazeres, conhecimentos técnicos transmitidos oralmente e por técnicas analógicas, sem qualquer dispositivo ou frequência de tecnologias digitais.
Os objetivos específicos, atingidos ao longo da pesquisa-ação do mapeamento colaborativo foram:
a) a produção da primeira base de dados georreferenciados online (livre e editável) com base no conhecimento de nativos, um arrendamento possível graças ao empenho voluntário possibilitado pela parceria entre os grupos OSM, LICA e GCR e
b) a popularização da ciência e da tecnologia em práticas de educação e a comunicação comunitária, o que envolve uma retroalimentação com demais pesquisas e ações desempenhadas no estado de Sergipe nos últimos anos.
Metodologia de mapeamento offline
Para esse mapeamento a metodologia incluiu sete etapas:
1) A pesquisa bibliográfica e produção de aula com recursos didáticos digitais ou não, todos de modo offline;
2) A mobilização de redes de interessados na cartografia do próprio território;
3) A instalação dos aplicativos OSM Tracker e Maps.Me em dispositivos smartphone de voluntários dos envolvidos na pesquisa de campo, ambos disponíveis de modo
online;
4) A apresentação da aula sobre mapas em OpenStreetMap flexibilizada para uma sala de aula que não dispõe de conexão com a internet;
5) A vivência e geolocalização offline de áreas dos riscos e das potencialidades locais;
6) A produção de geocodificações online sobre as áreas gravadas (em formato GPX.) na etapa anterior;
7) A educação continuada de novos agentes, professores e estudantes, moradores de lugares de risco rurais ou urbanos, com base na didática dialógica, orientado pelas vivências empíricas que estejam relacionadas a suas realidades socioespaciais e direcionados ao empoderamento do direito ao território e o direito aos mapas em Open Data.
O poder do mapeamento colaborativo
Com o povoado da Resina devidamente geolocalizado, com suas redes e seus limites, ficou mais fácil a previsibilidade por GPS para navegar dirigindo até o povoado, que antes era invisível nos mapas online.
Com o território no mapa, lideranças populares da Associação Quilombo Vivo acreditam no aumento da visitabilidade, ou seja, na possibilidade da Resina receber turistas interessados nas práticas de trilhas ecológicas, vivências comunitárias, pesca artesanal e aprendizado de tecnologias sociais com base em matérias-primas locais da terra além de deliciosas receitas preparadas com peixes do próprio rio São Francisco.
Diversas comunidades do Baixo São Francisco podem realizar o seu mapeamento colaborativo com base nesta metodologia e com apoios mais diversos, governamentais ou não-governamentais.
A natureza do “Velho Chico” clama por sustentabilidade enquanto os habitantes trabalham para permanecer no território com apoio de instituições que priorizam os direitos humanos.
Nesta causa indissociável as contradições se expõem e o povo da Resina prova que o diálogo entre analógico e digital pode ser amigável e progressivo quando a tecnologia se adapta ao território e não o contrário.
◊ Atualizado em 23 de setembro de 2019
Referências bibliográficas:
AGUIAR, Sonia & LARANJEIRA, Antônio Heleno C., 2017. Cartografias digitais colaborativas: questões para as Geografias da Comunicação. Anais do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), Curitiba, set-2017. Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2017/resumos/R12-3120-1.pdf.
BECKER, M. Opinião pública e comunicação dos riscos socioambientais da transposição do Rio São Francisco em comunidades tradicionais de Sergipe [tese]. São Cristóvão, UFS, 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido [1968]. Paz e Terra. 50ª Edição, 2011.
GIRARDI, G. Cartografia geográfica: reflexões e contribuições. Boletim Paulista de Geografia, nº 87, dez-2007. pp.45-66. Disponível em: https://agb.org.br/publicacoes/index.php/boletimpaulista/article/view/695/577.
O’DWYER, E. C. Terras de quilombo: identidades étnicas e o caminho do reconhecimento. In: Revista TOMO. – São Cristóvão, n.11, jul./dez 2007.
RAMASUBRAMANIAN, Laxmi. Geographic information science and public participation. Berlin, Heidelberg: Springer Verlag, 2010. Disponível em: https://academicworks.cuny.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=1029&context=hc
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◊ Imagem em destaque – Fragmento de mapeamento na Resina. Imagem | Open Street Map via Antonio Laranjeira
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