por Lester Black | The Guardian

Como uma nação indígena norte americana se empenha, há anos, para a recuperação do principal rio de seu território que, há quase um século foi barrado, impedindo condições de vida para seus ecossistemas aquáticos.

Com esta matéria, o InfoSãoFrancisco inicia a série Outros Rios, de reportagens e artigos sobre histórias de rios, no Brasil e no mundo, que falem suas gentes, lugares, seus ecossistemas, para que possamos conhecer experiências bem e não tão bem sucedidas e os crescentes conflitos pela água doce em todo o mundo. Uma oportunidade para reflexões e tomadas de decisões sobre o destino que desejamos para os rios brasileiros.

Scott Schuyler não precisa olhar para o rio Skagit para saber que há algo errado. Caminhando de rio abaixo pela margem, passo a passo sobre a rocha molhada e o musgo, ele pode ouvir o problema. “ Neste momento, o rio deveria estar cantando para nós, deveria estar correndo livre,” diz Schuyler enquanto as gotas da chuva fria de fevereiro vão desaparecendo em seu capote azul. O leito do rio sob seus pés, antes o lar de um dos maiores rios do estado de Washington, está silencioso e praticamente sem água, mesmo no meio do famoso inverno úmido do estado.

“Roubaram nosso rio. Foi saqueado por dinheiro”, diz Schuyler, sem meias palavras.

Schuyler é membro da nação indígena do Alto Skagit, que habita a bacia do Skagit há pelo menos 8.400 anos e considera o rio como u mente sagrado. Há um século atrás, os serviços públicos de Seattle (capital do estado de Washington) barraram o rio em três pontos, criando um complexo hidrelétrico que fornece cerca de 18% da energia da cidade. Neste trecho específico, próximo da fronteira com o Canadá, o rio foi convertido integralmente em um canal hidroelétrico, reduzindo seu leito a um punhado de poças d’água.

Os Skagit têm como objetivo que a cidade de Seattle remova a barragem Gorge (garganta, em tradução para o portugues), localizada mais abaixo entre as três do complexo, de modo a fazer o rio correr novamente sobre o leito que foi secado. A população nativa alega que os cem anos de atividade hidroelétrica no Skagit provocou uma queda abrupta na população de salmões, o que tem um efeito profundo em toda a região.

O Skagit é o último rio americano, fora do território do estado do Alaska, onde ainda existem populações das cinco espécies de salmões silvestres, ainda que os estoques estejam em declínio: duas espécies estão listadas oficialmentel como em risco de extinção, e uma população de orcas na foz do rio, que depende dos salmões do Skagit para sua sobrevivência, está, igualmente, em situação de alto risco.

“Nosso povo é um povo pescador, um povo do salmão. O salmão está sumindo e está afetando nossa gente”, diz Schuyler.

Durante milhares de anos a nação seguiu o curso do rio pelas montanhas para caçar alces e carneiros selvagens no verão, quando os salmões subiam as corredeiras no verão e outono, proporcionando extrema fartura para todas as pessoas das tribos.

A outorga federal para as operações das barragens expira em 2025 e, para obter uma renovação, Seattle é condicionada a interagir com vários atores – incluindo as agências licenciadoras federal e estadual e a nação indígena Alto Skagit – para estudar os efeitos dos barramentos no rio.

Porém, menos de um ano após o início do processo de renovação, a cidade se viu em conflitos com praticamente todos os atores envolvidos, incluindo as poderosas agências do estado e federal. Para complicar, a SCL – Seattle City Light (serviço público de Seattle de geração e distribuição de energia) negou a demanda formalizada pela população indígena para que a barragem Gorge fosse removida e, indo mais além, solicitou ao governo federal outorga para aumentar a produção de energia e não a redução de atividades dos barramentos do Skagit.

A batalha que se trava contra as barragens do rio Skagit é, de certa forma, uma batalha relacionada ao custo oculto do enfrentamento às mudanças climáticas. De um lado, governos e empresas de serviços que vêem a energia hidrelétrica como uma fonte que produz pouca emissão de carbono; de outro, cientistas voltados para a conservação do patrimônio natural e outros ativistas/atores, muito frequentemente povos indígenas, que vivem em bacias de rios-alvo, que denunciam barramentos como ações devastadoras nos ecossistemas locais. Em uma cidade considerada liberal com Seattle, ativistas citam que o orçamento de cerca de US$1,4 bilhão (um bilhão e quatrocentos milhões de dólares) da SCL e sua consistente falta de imaginação quanto à proteção do meio ambiente é um ponto de alto contrataste, que merece atenção.

“Nós vivemos em uma era de maior justiça social, o que é o mantra de Seattle”, diz Schuyler. “Porém, o que está em construção não se encaixa no mantra. Não é justiça social, nós vemos com trauma cultural”.

Enquanto Seattle se promove como “a cidade com os serviços públicos mais verdes do país”, e que prioriza a segurança das populações de peixes acima da produção de energia, cientistas envolvidos no processo de renovação da licença federal concordam com Schuyler e sua nação de que os barramentos estão, sim, a criar impactos no rio.

Os picos das Pirâmides se impõem acima do lago Diablo, um reservatório criado pelos barramentos. O maciço das Cascades do norte é a cadeia de montanhas com a maior densidade de geleiras nos EUA. Foto: Lester Black

O Serviço Nacional da Pesca Marinha (sigla NMFS em inglês), parte da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (sigla NOAA em inglês), estabelecem que que as barragens são parcialmente culpadas pelo declínio dos salmões no rio Skagit e no golfo Puget, onde o rio lança suas águas e é visitado pelas orcas, a cada ano. Em ofício para o regulador federal de energia, o NMFS também cita que as operações dos barramentos “não são adequadas para a sustentabilidade e recuperação” das orcas e salmões em risco.

O salmão é uma família migratória de peixes que nascem nos rios, mas depois nadam para o oceano aberto, onde passam a maior parte de suas vidas, antes de migrar de volta rio acima para se reproduzir. No presente é quase impossível medir com precisão como as barragens de Seattle afetaram os peixes do Skagit, já que a construção da barragem começou em 1919, muito antes de os cientistas terem a chance de medir a saúde do rio antes da intervenção.

Mas os estoques de peixes claramente diminuíram. O NMFS estima que, no século 19, quase um milhão de trutas prateadas retornava anualmente ao Puget Sound. Neste inverno (2021), o rio Skagit, que é o maior rio de Puget Sound, teve menos de 4.000 trutas prateadas migrando para o alto Skagit para desovar. Segundo Schuyler, a alocação de pescado para sua tribo era de apenas 75 peixes individuais.

O leito do rio sem água contrasta fortemente com os invernos chuvosos da região. Picos cobertos de neve pontilham o horizonte enquanto Schuyler conduz o carro, adentrando nas montanhas do parque nacional North Cascade. Esses picos são um dos lugares mais nevados do planeta e o Skagit drena as montanhas americanas mais pesadamente cobertas por glaciais fora do Alaska – mas o leito do rio sem água abaixo da rodovia mal é grande o suficiente para ser chamado de riacho.

A Comissão Federal de Regulação de Energia (em inglês FERC, similar à ANEEL no Brasil), que é responsável por regulamentar as empresas de serviços públicos do condado, provavelmente não forçará a cidade a remover qualquer uma de suas barragens. Mas Schuyler espera que o processo de relicenciamento exponha os danos ambientais do projeto hidrelétrico e que os residentes de Seattle possam então decidir pela remoção da represa Gorge. Como o SCL é um serviço público, os residentes de Seattle são os proprietários legais das barragens de Skagit.

Há indícios de que o processo de relicenciamento está aumentando a conscientização.
Em janeiro, o Serviço Nacional da Pesca Marinha escreveu um ofício à FERC alegando que os serviços públicos da cidade estavam contestando “informações científicas fundamentais” necessárias para informar o processo de relicenciamento. O Conselho de Comissários do condado (equivalente ao município no Brasil) de Skagit escreveu uma carta aberta criticando os serviços públicos de Seattle, considerando “o status quo” do rio Skagit, “inaceitável”.

Ainda mais preocupante para a cidade, um cientista do departamento de ecologia do estado [de Washington] ameaçou em fevereiro reter um certificado de qualidade da água exigido para operar as barragens porque a concessionária negou repetidamente os pedidos de estudo do departamento. Jim Pacheco, um cientista do departamento, descreveu a última justificativa da concessionária para negar um estudo solicitado como “risível” e alertou que o não recebimento do certificado teria “consequências desastrosas” para o SCL.

Andrew Bearlin, gestor das licenças do Skagit nos serviços públicos [de Seattle], disse em uma entrevista para o The Guardian que o SCL não tem divergências científicas fundamentais com outras agências científicas.

“Não discordamos dos fundamentos da ciência, eu diria que às vezes lutamos para ter espaço para entender a perspectiva uns dos outros sobre essa ciência”, disse Bearlin.

Uma disputa científica presente no cerne do processo de relicenciamento é se os peixes selvagens alguma vez migraram rio acima, passando pelo local das represas da cidade. A empresa afirmou que barreiras naturais, incluindo grandes rochas, têm historicamente bloqueado quase todos os peixes de migrar rio acima antes que eles possam chegar à represa Gorge, o que significa que as represas têm um “efeito limitado” na migração do salmão. Mas o Serviço Nacional da Pesca Marinha disse em uma carta regulatória de outubro para a FERC que a empresa “não citou dados reais” que identificassem as barreiras naturais para a passagem dos peixes. O serviço também disse que observadores viram salmões nadando na base da represa Gorge de 300 pés (cerca de 90 metros), sugerindo que “tal barreira não existe”.

Um cartaz da empresa de energia de Seattle explica que as barreiras naturais, e não os barramentos construídos, impedem a migração no período de reprodução dos peixes rio acima, um conflito lançado pelo Serviço Nacional da Pesca Marinha. Foto: Lester Black.

Os Serviços Públicos há muito afirmam em materiais de marketing que “todas as três barragens estão a montante de uma barreira natural para a passagem dos peixes” e que suas barragens “não interferem nas migrações e na desova do salmão selvagem”. Mas em janeiro, o SCL removeu qualquer referência às barreiras naturais, justamente quando o processo de relicenciamento da Comissão Federal de Regulação de Energia (em inglês FERC, similar à ANEEL no Brasil) estava se tornando cada vez mais controverso. Um porta-voz do SCL disse que a remoção era parte de uma reforma há muito planejada do site e não estava relacionada ao relicenciamento da FERC.

Depois de rejeitar inicialmente um estudo de passagem de peixes em março de 2020, a cidade reverteu o curso em dezembro de 2020 e concordou em estudar a passagem de peixes além das barragens. Chris Townsend, diretor de licenciamento hidrelétrico do SCL, disse ao Guardian que o SCL sempre planejou incluir o estudo.

A cidade de Seattle manteve a recusa do pedido da nação indígena para estudar a remoção da barragem Gorge porque é uma “peça-chave de um futuro de energia verde”, de acordo com Tom DeBoer, diretor ambiental do SCL.

“Não faz sentido, nesta era de mudança para energia 100% limpa, retirar esses recursos livres de carbono que são essenciais para a integração eólica e solar”, disse DeBoer.

Schuyler disse que Seattle poderia continuar extraindo eletricidade das duas barragens superiores, mesmo se a represa Gorge caísse, e prometeu continuar pressionando a cidade para estudar rigorosamente o rio. Ele disse ainda que espera que esses estudos científicos convençam os residentes de Seattle de que suas represas estão longe de ser inofensivas.

“Vivemos aqui há 10.000 anos”, diz ele. “Nós protegemos e lutamos pelo Skagit, e isso permanece até hoje.”

Este artigo foi publicado originalmente pelo The Guardian, em 05/03/2021.

Tradução: Carlos E. Ribeiro Junior/InfoSãoFrancisco


Fontes

The Guardian