Ex-presidente do Ibama critica revogação de regras pelo ministro Ricardo Salles e afirma que legislação ambiental está sendo desconstruída de forma violenta devido a “lógica de pacto do governo com o setor empresarial”.
DW via REDAÇÃO
Criado há 40 anos para estabelecer normas de cuidado ambiental, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) ganhou uma cara nova sob o governo do presidente Jair Bolsonaro: composto agora majoritariamente por representantes do governo federal, o órgão acaba de diminuir a proteção de ecossistemas e permitir o aumento da poluição.
Numa reunião nesta segunda-feira (28/09), presidida pelo ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, o conselho anulou a resolução 284/2001, que exigia o licenciamento ambiental para empreendimentos de irrigação; revogou normas referentes a Áreas de Preservação Permanente (a resolução 302/2002) e retirou a obrigatoriedade da faixa de proteção mínima em áreas de restinga do litoral e sobre toda a extensão dos manguezais (303/2002). Sem discussão ampla, o Conama também aprovou uma nova regra que permite a queima de diversos tipos de resíduos, como agrotóxicos, em fornos usados para a produção de cimento.
Suely Vaz de Araújo, que presidiu o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) entre junho de 2016 e janeiro de 2019, durante o governo Michel Temer, acompanhou horrorizada a reunião. Segundo ela, quem atua em política ambiental nunca presenciou nada como o que aconteceu nesta segunda-feira.
“O que o país ganhou com isso?”, questiona Araújo, que atualmente atua como especialista sênior em políticas públicas no Observatório do Clima. “Não dá para para entender por que tanta insistência numa coisa dessas. Quem está ganhando com isso? Por que deixar poluir mais?”, lamenta em entrevista à DW Brasil.
Para muitos brasileiros, esse debate ocorrido no Conama pode parecer distante, abstrato. Mas o que é decidido pelo conselho pode ter graves impactos, principalmente na saúde. Das regras que foram alteradas na última reunião, qual delas pode ter um efeito negativo mais severo, na sua avaliação?
Nossa legislação ambiental é considerada avançada, foi construída aos poucos. A gente sempre foi respeitado por essas regras de proteção do meio ambiente. A leitura geral sobre as políticas do país nesse campo era de que o Brasil respeitava o meio ambiente. Isso está sendo desconstruído de uma forma muito rápida e muito violenta. Isso tem implicações para o equilíbrio ambiental, para a questão climática e a saúde humana.
A resolução sobre coprocessamento de resíduos aprovada [uma nova resolução permite e regulamentar a queima de diversos tipos de resíduos em fornos usados para a produção de cimento, no chamado coprocessamento] viabiliza a queima de agrotóxicos e outros resíduos que tenham poluentes orgânicos persistentes em forno de cimento. Isso significa poluentes muito perigosos no ar. Isso era proibido antes.
Numa canetada dessas, o Conselho Nacional de Meio Ambiente abre a possibilidade de ter esses poluentes no ar. O que o país ganhou com isso? Nada. Não dá para entender por que tanta insistência numa coisa dessas. Quem está ganhando com isso? Por que deixar poluir mais? Uma norma que vinha desde 1999 e retroceder agora, em 2020. Não faz sentido.
Se você olhar a norma que foi revogada, o primeiro artigo proibia a queima de agrotóxicos, e isso agora sumiu.
É muito sério. É preciso que a sociedade acompanhe, não pode ser um “libera geral”. A degradação ambiental está mostrando o que ela causa, a gente tem um monte de problemas para gerenciar: poluição, falta de drenagem, fumaça das queimadas na Amazônia e no Pantanal chegando ao Sudeste, e as pessoas têm que perceber que precisamos cuidar. Nossos representantes, que estão no governo, precisam ser pressionados pelo menos para que não haja retrocesso.
O que dói mais em tudo o que está acontecendo é esta volta para trás.
É notável uma mudança de postura drástica depois dessa volta do Conselho Nacional de Meio Ambiente, numa reunião que anulou decisões importantes de proteção ambiental sob o comando do ministro Ricardo Salles?
A maior parte dos conselheiros, com raras exceções, tem uma postura favorável a qualquer flexibilização da legislação ambiental.
As três revogações e a resolução que saíram da reunião foram nesse sentido, de reduzir o rigor da legislação. Então é bastante complicado ver que, na verdade, a composição que foi feita vai viabilizar que o governo controle todas as decisões. E o Ministério do Meio Ambiente está com uma postura de flexibilizar, retirar normas, retirar exigências, sempre no sentido de atenuar o rigor da legislação. É o “passar a boiada”, segundo a expressão que o ministro Ricardo Salles usou na tal da reunião ministerial famosa.
O Conama era bem maior, tinha mais de cem membros. Cada ministério tinha um representante. Mas o que acontecia é que o governo não votava unido no sentido de flexibilizar as leis. O governo sempre era dividido. Havia Ibama, Instituto Chico Mendes votando sempre junto com uma parte dos governos estaduais, com ambientalistas. Eram 27 representantes de governos estaduais e secretarias de Meio Ambiente, agora só são cinco.
Em matérias polêmicas, o debate era ampliado e, de uma forma ou de outra, havia um respeito pelo o que saía do conselho. O setor empresarial respeitava menos, porque ele sempre criticou o Conama, assim como a CNA [Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária], apesar de ela fazer parte [do conselho].
Era um processo mais aberto, com mais gente, com discussões mais publicizadas. Mesmo nas Câmaras Técnicas eram chamadas pessoas de fora, especialistas, consultas eram feitas, e isso acabava legitimando a norma que era produzida.
Em determinados temas, quase só o Conama legislou em nível nacional. Licenciamento ambiental é um deles. Há um artigo na lei 6.938, de 19881, que criou a licença no âmbito nacional, mas há mais de 40 resoluções sobre o tema do Conama. Uma delas é a que foi revogada agora, sobre irrigação.
Nesse caso específico, em que se tira a obrigatoriedade do licenciamento ambiental para projetos de irrigação, quais são os principais impactos que se pode prever?
A CNA começou esse processo, segundo estudei no site do Conama, alegando que não haveria licença para irrigação porque ela seria uma parte da atividade agropecuária. Essa posição da CNA é contraditória, porque nos debates no Congresso Nacional sobre a lei geral do licenciamento ambiental, eles defendem a isenção das licenças para a atividade agropecuária.
Há falas de representante do Rio Grande do Sul durante a reunião que dizem que, se a CNA está alegando que a licença é do empreendimento agropecuário e não da irrigação, eles irão obrigar a obtenção de licença para plantação de soja, milho, etc.
O raciocínio dele está correto, porque a maior parte dos estados não exige licença para agropecuária em si, para o plantio, mas exigem licença para irrigação. Não está fazendo sentindo a posição da CNA. Parece que eles não querem licença para nada, nem para o plantio, nem para irrigação.
A outorga de água em si controla a quantidade de água, mas não controla onde os canais serão instalados, a tecnologia que será usada, se isso prejudica ou não a questão ambiental. Então a outorga sozinha não é suficiente.
Essa discussão deveria passar não pela revogação da resolução (n. 284), mas pela elaboração de uma outra que atualizasse questões, como em quais casos é necessário o licenciamento simplificado, só com uma fase, ou com duas ou três fases. Você pode atualizar, o que não pode é você sumir com isso do mundo jurídico, porque isso não está em outras leis, em outras resoluções.
Alguns dispositivos da resolução diziam que é preciso escolher a opção tecnológica que gaste menos água e menos energia. Isso não está na legislação.
Uma outra decisão tomada na reunião foi a de acabar com áreas de preservação permanente, como o espaço mínimo de restinga, faixa de vegetação que fica à beira-mar e é tida como uma das mais ameaçadas do mundo. É possível ter uma ideia dos efeitos que isso trará?
No caso das áreas de preservação permanente, há conteúdos que estavam na resolução e que não estão na lei florestal. A resolução 303 exigia uma faixa mínima de proteção de restinga de 300 metros. Isso não está no Código Florestal de 2012.
Agora tudo vai ficar a critério do licenciador. É isso que vai acontecer, não vai ter um padrão. Imagine se você é um empreendedor e respeitou a faixa de 300 metros, e está na sua licença, que era estabelecida com base nessa resolução. Isso vai dar judicialização considerável no sentido negativo. Donos de resorts e outros empreendimentos vão alegar que, com a queda da resolução, não se aplica mais a faixa de proteção de 300 metros.
O impacto é enorme. Não se tem como calcular a importância da restinga, não tem número que pague a proteção que elas fazem.
A maneira como o Conama foi reorganizado, após um decreto do presidente Jair Bolsonaro de 2019, resultou praticamente numa anulação da sociedade civil. Você vê caminhos para que essa participação seja restabelecida, para que a discussão seja um pouco mais equilibrada?
Das quatro cadeiras destinadas para organizações não governamentais, duas ONGs que assumiram o posto já pediram para sair.
Acho que a última reunião mostrou como o Conama vai funcionar. Em quase todas as ocasiões, o ministro já encaminhava a pauta direto para a votação, e alguém sempre se manifestava dizendo que antes era preciso haver uma discussão.
A dinâmica do conselho está no sentido de passar a boiada, de ir votando a posição que vem da lógica de pacto do governo federal com o setor empresarial. Essa é a lógica agora.
Só muda se a Justiça decidir contra essa composição atual. Há uma ação proposta pelo Ministério Público Federal ainda na época da Raquel Dodge. Uma decisão nesse sentido, mais estrutural, questionando a composição atual, pode causar esse efeito de reverter. Fora isso, se for nessas reuniões como estão ocorrendo agora, não vejo perspectiva nenhuma.
Fontes
DW – Deutsche Welle
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Imagem em destaque – As restingas da foz do São Francisco. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | InfoSãoFrancisco