Iniciando uma série de conversas com especialistas em Geotecnologias, o InfoSãoFrancisco apresenta uma entrevista exclusiva com Luiz Ugeda, pesquisador em “Geodireito”, uma nova denominação interdisciplinar, criada pelo entrevistado, para compreendermos a intrincada relação entre Geografia, Direito e Tecnologia.
O nosso entrevistado é advogado e geógrafo, pós-doutorando em Direito (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) e em Geografia (Universidade de Brasília – UnB); doutorando em Direito (Universidade de Coimbra – Portugal) e Doutor em Geografia (UnB); Mestre em Direito e em Geografia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e pesquisador em Geodireito. É ainda CEO da Geodireito, presidente da Comissão de Geodireito da OAB/SP e investigador da Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas da Universidade de Aveiro, Portugal. Ocupou também funções de gestão em diversas empresas, associações e órgãos públicos do setor elétrico, do aeroportuário e de concessões de rodovias.
InfoSãoFrancisco – Para começarmos a entender a questão dos mapas reconhecidos como “públicos”: onde está o mapa oficial brasileiro?
Luiz Ugeda – Está em todo lugar. Como exemplo, na Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais, no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no Cadastro Ambiental Rural, nos cartórios, na Receita Federal, na Embrapa, na Empresa de Planejamento e Logística, no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes e, principalmente, no exterior, nas plataformas largamente utilizadas pela União, estados e municípios.
Logo, não está em lugar algum. Cabe à União organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional (art. 21, XV, CF), sendo privativo à mesma legislar sobre sistema estatístico, cartográfico e geológico (art. 22, XVIII, CF). Neste cenário, resta a questão central: questionar a União sobre quem deve dizer qual é o mapa oficial brasileiro.
Cabe ao Congresso Nacional criar legislação própria, que defina um marco regulatório específico para a produção, sistematização e disseminação da geoinformação. Afinal, esta é uma política necessária para desenvolvimento sustentável, a viabilização do ordenamento do território e a concepção de cidades inteligentes. Vale lembrar que o Congresso Nacional nunca legislou sobre o tema em regime democrático. Nossos três modelos (1890, com Rui Barbosa, que criou o serviço geográfico do Exército; 1937/38 com Teixeira de Freitas e a concepção do IBGE, e 1967, que transformou o IBGE em Fundação nos últimos 15 dias da gestão Castelo Branco) sugerem que a sociedade brasileira nunca se importou, ou mesmo percebeu, a importância de se ter um mapa público oficial como base para o desenvolvimento nacional.
Logo, para ter um mapa oficial que funcione e viabilize um efetivo ordenamento territorial, é necessário se pensar em governança pública, que transforme, de fato, a geoinformação em serviço público e fortaleça nossa indústria de mapeamento.
ISF- Quem afinal coordena a base de dados de Geoinformação Pública no Brasil e por que é importante regular mapas?
LU – No século 21, os estados são menos produtores e mais reguladores de mapas. Isso já estava no item 7.33. da Agenda 21 da ONU, de 1992. Ele afirma que todos os países devem obter acesso às técnicas modernas de manejo dos recursos terrestres, tais como sistemas de informações geográficas, imagens/fotografias feitas por satélite e outras tecnologias de sensoriamento remoto. Assim também sinaliza o item 17.18 da Agenda 2030, que expõe sobre a importância de se aumentar significativamente a disponibilidade de dados de alta qualidade, atuais e fidedignos, desagregados ao nível do rendimento, gênero, idade, raça, etnia, estatuto migratório, deficiência, localização geográfica e outras características relevantes em contextos nacionais.
“O Big Data está aí. Antes, precisávamos do Estado para produzir dado; agora, o dado está em todo lado, o que precisamos é dizer qual vale para efeito público. Afinal, com o advento de novas tecnologias e da consequente massificação dos dados, houve uma grande mudança de paradigma sobre a atual natureza jurídica dos mapas públicos, de simples conjuntos de dados a ferramentas fundamentais para as sociedades.”
Os mapas contemporâneos utilizados pelas entidades governamentais devem ser tratados como um setor emergente de infraestrutura.
Regular mapas é importante para viabilizar a condição do estado em orquestrar o que vale para efeito público, uma vez que ele não precisa mais produzir o dado bruto, como fazia, p. ex., na década de 1980. Com ferramentas maravilhosas, como ocorre com Google Earth e demais plataformas amplamente utilizadas pela iniciativa privada, parece não haver espaço para que o contribuinte arque com os custos de rivalizar com estas plataformas na constituição de mapas mais precisos, mas incentivá-las a desenvolver mais e melhor mediante um sistema regulatório.
Ou seja, que possam ser remuneradas, via tarifa, caso seus mapas sejam considerados como oficiais. E isso vale para incentivar o espírito empreendedor de jovens geógrafos ou engenheiros cartógrafos e de empresas já constituídas, além de dar segurança jurídica a proprietários de imóveis e fomentar todo um setor de startups de mapeamento.
ISF – Existem países que podemos tomar como modelo hoje para elaborarmos uma lei de infraestrutura de geoinformação?
LU – Podemos afirmar que, atualmente, o modelo brasileiro de fixar um instituto para gerir o serviço geográfico nacional é exceção. Mesmo comparando com países economicamente mais precários, a governança nacional se destaca negativamente. Tudo isso pelo fato de não termos uma política pública fixada em lei; um conselho que junte os “condôminos geoespaciais”; e um “síndico” para tomar as decisões em nome deste condomínio.
Poderíamos dar inúmeros exemplos de governanças internacionais. Os Estados Unidos, que descortinaram ao mundo as possibilidades da observação geoespacial, têm como referência a infraestrutura espacial, criada em 1994, vinculada a um Comitê Federal de Informação Geográfica (FGDC) que a regula, concebido em 1990. Esse sistema é coordenado pelo órgão de pesquisa geológica, que atua como agência de mapeamento civil, possuindo um Programa de Mapeamento Nacional voltado à produção de dados cartográficos básicos. Em 2008, foi instituído o Comitê Nacional Geoespacial Consultivo como um meio para melhorar a coordenação e governança das atividades nacionais geoespaciais, fornecendo ao FGDC um fórum para disseminar conhecimentos dentre a comunidade científica.
A Diretiva INSPIRE (Infrastructure for Spatial Information in the European Community) significou um enorme avanço na governança geográfica da União Europeia. Como exemplo, em 2007, ano de sua fundação, havia apenas 1.384 dados geográficos identificados. Em 2013, esse número já havia saltado para mais de 56 mil. A Alemanha conta com uma lei federal, diversas bases para o acesso a dados e uma Agência Federal de Cartografia e Geodésia que produz modelos digitais de terreno e os mapas topográficos digitais em escalas abrangentes, que variam de 1:1.000.000 até 1:25.000 [mundial até local]. Todavia, o levantamento e o mapeamento são uma tarefa dos 16 estados federados.
Na Ásia, a China conta com a Administração Nacional de Agrimensura, Mapeamento e Geoinformação (NASG), sob gestão do Ministério da Terra e dos Recursos Naturais do Conselho de Estado, que é a autoridade central responsável pela total supervisão e gestão de agrimensura, geoinformação e mapeamento de trabalho do país. O Sri Lanka, que estabeleceu rede de triangulação geodésica para mapear toda a ilha em razão de uma polegada a uma milha, criou em 2002 a Rede de Controle Geodésico Nacional.
A Turquia, com a Agência Nacional de Mapeamento, ligada ao Comando-Geral de Mapeamento (GCM), é a responsável pelo estabelecimento e manutenção das redes geodésicas, coleta e estruturação de dados topográficos e as informações geoespaciais.
ISF – No caso do Brasil, por que advogados precisam desse dispositivo legal? O que isso muda na cidade e no campo?
LU – Advogados ainda despertam para este emergente setor. Tenho a honra de presidir a Comissão Especial de Geodireito da OAB/SP, a primeira de órgão de classe desta natureza na América Latina e na Lusofonia. Afinal, o Brasil não terá redes inteligentes, cidades inteligentes ou um meio urbano, ambiental ou agrário organizado sem pensar em ordenamento do território, que, por si só, é uma expressão geojurídica. A ordem é dada pelo Direito ao território, enquanto espaço geográfico.
Nos comprometemos a juntar pessoas com pensamentos e formações distintas, quase como se fosse uma renovada Escola de Sagres. Dentre os temas que exploramos, estão a criação de marco jurídico geográfico e cartográfico, a regulamentação de tecnologias para essa finalidade (como uso de satélites, aerolevantamento e drones), o emprego de cartas técnicas para mitigar desastres naturais, o emprego de infraestrutura geográfica para redes e cidades inteligentes, dentre outros.
Isso sem falar no incrível mercado que se avizinha. Em países onde agências territoriais vigoram, o setor tem crescido de forma exponencial. A Holanda emprega em torno de 15 mil pessoas com volumes de cerca de €$ 1,5 bilhão por ano. É um território 180 vezes menor que o Brasil. Estudos da Goldman Sachs afirmam que o mercado do mapeamento para carros autônomos, intensivo no uso de infraestrutura geográfica, deve gerar US$ 25 bilhões em 2040. Trata-se de um tema sensível, uma vez que dúvidas entre um posicionamento real e um cartorial de um veículo autônomo podem gerar desde problemas legais de invasão de propriedade a questões graves como acidentes e atropelamentos. Precisamos ter personalidade jurídica. Se um carro autônomo atropelar alguém em uma cidade brasileira, não podemos processar a “nuvem”. Temos que tornar as relações transparentes entre direitos e deveres no país.
ISF – Os mapas online que usamos via smartphones hoje permitem à sociedade gerar e disponibilizar seus geodados em plataformas de geoweb. Como conciliar o geodireito e a liberdade de expressão na Internet?
LU – Pessoas se georreferenciam voluntariamente em redes sociais; o Estado georreferencia os cidadãos para efeitos tributários, criminais e até de espionagem; há políticas públicas que envolvem a prevenção de catástrofes naturais, a urbanização de favelas, o planejamento ambiental, a viabilização de infraestruturas e a gestão de detentos por tornozeleiras eletrônicas; empresas se utilizam do geomarketing para diversas finalidades econômicas.
Chegamos ao ponto de criar a expressão geoslavery (geoescravidão, em tradução livre) para alertar sobre invasões de privacidade devido à expansão desenfreada de serviços baseados em geolocalização. A massificação do acesso à tecnologia geográfica, impulsionada pela proliferação de smartphones, nos dá rápido acesso a diversas formas de mapas, e todos estes elementos em conjunto moldam o estilo de vida deste início de século.
Há de se compatibilizar o respeito aos direitos fundamentais, ao exercício das liberdades de expressão e de informação, sobretudo em relação à intimidade pessoal, familiar, à honra, à própria imagem e à proteção aos dados pessoais com este mundo de vigilância líquida, segundo Bauman.
“Cada um de nossos comentários, ações e interesses consta dos bancos de dados pessoais que estados e entidades privadas possuem e que constituem, na maioria dos casos, seus grandes ativos. Essa “civilização cibernética” baseia-se em um paradigma informacional, no qual geração, processamento e transformação da informação de uma determinada sociedade se convertem em fontes fundamentais de produtividade. Nesse cenário, a informação é matéria-prima do poder, e as geotecnologias o meio para se atuar sobre ela.”
Essas premissas podem afetar os direitos fundamentais, uma vez que a vida que desenvolvemos online pode ter impacto direto em nossa liberdade e direitos.
Em 24 de abril de 2020, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, julgou favoravelmente cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que pediam a suspensão dos efeitos da Medida Provisória n.º 954-2020, que enviava os dados de 220 milhões de aparelhos telefônicos da Anatel ao IBGE. Sua decisão, em caráter liminar, argumentava sobre “prevenir danos irreparáveis à intimidade e ao sigilo da vida privada de mais de uma centena de milhão de usuários dos serviços de telefonia fixa e móvel” e mostrava um dos grandes desafios do nosso tempo: fixar o limite entre o dado individual e o interesse coletivo e difuso.
A covid-19 demonstra que estamos na pré-história do uso intensivo desses dados pelos poderes públicos. Há um futuro promissor para os profissionais da Geografia e do Direito nessa fronteira.
ISF – Para finalizar nossa entrevista, tratando do recente fato da cotação da água na bolsa de valores de Nova Iorque, na sua opinião, como os dados geoespaciais podem ajudar a gerir esse bem público de uso comum?
LU – A gestão de recursos hídricos por sistema de informação geográfica é fundamental na estruturação de dados para apoiar decisões políticas, econômicas e sociais neste setor. Chama a atenção, p. ex., que o Marco Legal do saneamento promulgado este ano não fale nada sobre o mapeamento do subsolo, das redes de água e de esgoto. Há uma lacuna enorme entre a potencialidade das ferramentas de informação geográfica e seu uso enquanto política pública. Há tudo a ser feito nessa frente.
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Imagem em destaque – Acervo Luiz Ugeda