Postado emNotícias / Entrevistas

Entrevista: Cartografia colaborativa precisa de mais política pública, não só novas tecnologias

 
Imagem LabGis-UERJ
Imagem LabGis-UERJ

por Geocracia

No próximo dia 4 de outubro, o Núcleo de Geotecnologias da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ) – Sistema Labgis e o Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, do Município do Rio de Janeiro, realizam a 10ª edição do Geotecnologias na Gestão Pública (GPP), evento anual que discute e apresenta o uso de infraestruturas de dados na formatação de políticas públicas.

Em entrevista ao Geocracia, os organizadores do evento – Rui Azevedo dos Santos e José Sapienza Ramos, respectivamente, coordenador e coordenador Acadêmico do Sistema Labgis – analisam a evolução da geoinformação no Brasil. Para eles, os maiores obstáculos à construção de uma cartografia colaborativa na formatação de políticas públicas não são tecnológicas, mas a “falta de infraestrutura de telecomunicações e de energia, a limitada inclusão digital da população e a timidez do poder público na construção de uma sinergia que promova ambientes propícios à colaboração direta da sociedade.”

Já estamos na décima edição do GPP. O que esse histórico mostra em termos de evolução da infraestrutura de dados espaciais do Brasil?

Rui: É notável a evolução das infraestruturas de dados espaciais no Brasil, todavia ainda existe um descompasso grande entre as utilizações das geotecnologias nos diferentes ambientes públicos e também na consolidação efetiva de uma lógica ou ação mais concatenada na obtenção e disponibilizações de dados geográficos. A despeito do maior uso da informação geográfica na dimensão brasileira, ainda temos uma homogeneidade baixa entre estados e municípios. Mas, se em outras infraestruturas tradicionais padecemos exatamente por faltarem políticas estruturadas, imagina para as infraestruturas de dados espaciais.

José: Eu entendo que o debate do dado geográfico como infraestrutura avançou muito no cenário brasileiro a partir da criação da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais, em 2008. Hoje, várias unidades federativas e municípios criaram suas Infraestruturas de Dados Espaciais, iniciativas que sempre possuem espaço na programação do GGP. Quando eu faço um apanhado nas gravações das palestras mais antigas e comparo com as gravações da última edição do GGP, me salta aos olhos uma diferença.

Enquanto as palestras antigas se concentravam em aspectos técnicos a ponto de se ter slides com inventário de hardware e software (como, por exemplo, “temos em nosso setor três licenças de software, um plotter e quatro estações de trabalho”), as palestras atuais falam com frequência de normatização, qualidade de dados, arcabouço legal, impacto social e econômico das informações geográficas disponibilizadas. Fica claro que, hoje, as apresentações vão muito além dos aspectos meramente técnicos, que são importantes, porém não suficientes para se entender as facetas de uma infraestrutura de dados espaciais.

Rui: Podemos dizer que temos no Rio de Janeiro três níveis de qualificações no uso da informação geográfica para gestão pública: a capital, por meio do Sistema Municipal de Informações Urbanas (SIURB) como iniciativa mais bem desenvolvida; a região metropolitana avançou em algumas frentes importantes, a partir de algum investimento nos últimos anos e da experiência da capital; e, no mais, um terreno baldio nos termos de desenvolvimento dessas atividades, com exceção de alguns municípios por iniciativas isoladas do quadro técnico determinado ou um gestor público mais esclarecido. Todavia, a assimetria é a regra, onde muito há que se fazer para recuperar o tempo perdido.

José: Eu entendo que dada a relevância política, cultural e econômica do Estado do Rio de Janeiro, a política fluminense deveria ter se apropriado melhor das informações geográficas e suas tecnologias para desenvolver políticas territoriais baseadas em evidência. Temos importantes iniciativas fluminenses que nos permitem afirmar que houve uma evolução. Mas o que precisamos debater é onde queremos – e precisamos – chegar para dar saltos qualitativos no uso das geotecnologias. O evento GGP se propõe a criar um espaço qualificado de debates e para construir pontes, dando sua pequena contribuição para difundir boas ideias, dar espaço aos importantes trabalhos realizados no Brasil e também pensar em soluções para os problemas que muitos setores públicos enfrentam a fim de avançar em suas agendas de uso das geotecnologias.

Já seria possível se vislumbrar a cartografia colaborativa como instrumento de política pública? Quais seriam as melhores soluções para essa finalidade?

Rui: Falando não como um especialista técnico no assunto, mas como um observador da cena política local e nacional, temos uma sociedade que paulatinamente começa a se engajar nessa lógica colaborativa. Entretanto, o poder público ainda está muito tímido na construção de uma sinergia possível e necessária a fim de promover ambientes propícios à colaboração direta da sociedade. Quando muito, há uma recepção indireta de dados geográficos colaborativos, na qual o poder público se utiliza sistemas de certa forma colaborativos, porém privados, como Waze ou Google Maps.

José: A tecnologia permitiu que qualquer pessoa com um acesso e domínio razoável a ela – o que, infelizmente, é apenas uma parcela da população brasileira – possa se engajar em assuntos de seu interesse, produzindo e consumindo dados pela Internet. Em adição, no contexto da Internet das Coisas, temos sistemas que captam dados de sensores espalhados pela cidade como sinais de trânsito, estações climáticas, câmeras de monitoramento, GPS em transporte público, entre outros. Pelo que percebo, apenas poucos estados e municípios têm conseguido avançar em sistemas que trabalhem no contexto da Internet das Coisas, e uma quantidade ainda menor percebe que, ao invés de apenas máquinas, os sensores também podem ser pessoas engajadas na produção de dados e manifestar sua cidadania por meio de cartografia colaborativa. A tecnologia e as soluções estão postas, em que pese as empresas brasileiras não terem o mesmo domínio tecnológico do que aquelas em países mais avançados nesse campo. Não creio que a tecnologia seja o maior problema no momento. Me parece que os maiores problemas estão nas carências das infraestruturas de telecomunicações e de energia, na limitada inclusão digital da população e na falta de capacidade dentro do serviço público de hospedar e desenvolver esse tipo de iniciativa.

Pelo avanço das geotecnologias, quais serão os principais temas da 20ª edição do GGP, em 2031? Ou estaremos confinados a reprisar pautas semelhantes pelo baixo avanço das políticas públicas geoinformacionais?

Rui: Considerando que, daqui para 2031, teríamos dois mandatos presidenciais e dada a evolução rápida da informática e suas ferramentas e aplicações, que permitem grandes saltos no tempo sem precisarmos passar pelas etapas intermediárias, nós certamente assistiremos na edição de 2031 do evento Geotecnologias na Gestão Pública (GGP) a palestras e mesas redondas muito mais avançadas do que hoje. O que eu tenho dúvidas é se venceremos as assimetrias atuais na federação brasileira entre as ilhas de excelência e todo o resto carente dessa infraestrutura.

José: Como o Rui bem colocou, a assimetria na infraestrutura de dados espaciais, que não deixa de ser um tipo de reflexo e ao mesmo tempo um reforço das desigualdades sociais brasileiras, é um dos maiores desafios que precisará ser vencido, pois as tecnologias continuarão evoluindo em seu ritmo acelerado e algumas ilhas de excelência conseguirão se apropriar e gerar valor utilizando essas tecnologias. Acredito que o GGP de 2031 ainda vai reverberar algumas das perguntas de hoje, que deverão estar ainda mais em voga, a citar três: Como avançar na pauta de uma política nacional de geoinformação? Qual será o modelo de financiamento para se ter uma cartografia sistemática brasileira com a escala e periodicidade necessárias para as políticas públicas? Como as políticas de diferentes setores podem melhorar a governança da informação geográfica? Hoje, e provavelmente ainda em 2031, o ponto fraco me parece estar na cultura e capacidade técnica do poder público em alavancar as geotecnologias como insumo qualificado na tomada de decisão. Como já vem acontecendo nas últimas décadas, a tecnologia continuará avançando mais rápido do que as sociedades se apropriam dela a fim de melhorar seu estado civilizatório.


Veja ainda

Entrevista: Luiz Ugeda – as questões centrais no direito ao território no Brasil

Os contraespecilistas: a opinião pública em mapas

Porque devemos falar sobre mapas públicos


Fontes

Geocracia


Imagem em destaque: acervo Tatiana Pará