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Cheias [provocadas] no Baixo São Francisco em discussão. Será?

Em mais uma reunião (dia 06 passado) dos entes da gestão das águas do rio São Francisco, na chamada Sala de Acompanhamento do Sistema Hídrico do Rio São Francisco organizada pela ANA – Agência Nacional de Águas, a UFBA – Universidade Federal da Bahia, através do GRH – Grupo de Recursos Hídricos apresentou proposta de adoção de pulsos de vazão (picos de defluências maiores com duração previamente estabelecida) de modo a simular uma situação próxima de uma cheia natural a partir da UHE Xingó.

A discussão sobre aumentos de vazão (cheias provocadas) com volumes próximos e em período temporal coincidentes com aos verificados em épocas pré-regularização é urgente, necessária, não é recente, porém nunca houve avanço.

Até o momento, o modelo de funcionamento de barramentos – dominado pelo setor elétrico e controlado pelo ONS – Operador Nacional do Sistema – não operou uma única vez com o objetivo do serviço ambiental (como por exemplo a manutenção do canal fluvial; a contenção do avanço da intrusão salina; o combate ao processo de assoreamento; a busca de melhoria de condições para a biota; limpeza ambiental de flora de espécies invasoras exóticas).

O conhecimento de que mais água, nos períodos e temporalidades das cheias naturais, é um tema abordado pela gestão do Velho Chico é merecedor de toda atenção da população do Baixo São Francisco. Mas, seria exatamente o que idealizam as figuras lá ao longe destas brenhas, aquilo que imaginamos há anos e anos, de ver o rio bater onde de fato batia? Ou trata-se de mais um produto sob o guarda-chuva dos donos da torneira, para propiciar uma ilusão passageira, tipo um sossega a turma, sem que o objetivo máximo seja de garantir uma possível sobrevida para o São Francisco ?

O Baixo São Francisco a jusante da UHE Xingó, que seria beneficiado pela chamada cheia. Cartografia: InfoSãoFrancisco

Uma leitura um pouco mais cuidadosa do que está sendo apresentado mostra que há pontos que devem ser (detalhadamente, com clareza, de fácil entendimento) esclarecidos.

Vejamos o que é discutido a partir das salas dos gestores (atualmente pelos canais virtuais das videoconferências).

A proposta do GRH descreve que:

“Para os meses de março à dezembro foi empregada as Regras definidas na Resolução ANA nº 2.081/2017, conforme verificação do volume do reservatório de Sobradinho. Para realizar a modelagem, foi necessário levantar os dados físicos e operacionais dos 4 reservatórios de Sobradinho, Itaparica, Complexo Paulo Afonso e Xingó. Além disso, as demandas de água da calha do rio também foram consideradas, sendo disponibilizadas no Cadastro de Outorgas da ANA, sendo elas: abastecimento humano, dessedentação animal, indústria, agropecuária, mineração, termelétrica, aquicultura, Projeto de Integração do São Francisco (PISF) Eixo Norte e Eixo Leste, Canal do Sertão Alagoano, dentre outras.”

Porém, como podemos observar no texto do GHR, não estão definidas com precisão e claramente, as necessidades do rio como rio: sua biota, os sistemas ripários, zonas de transição água/margem, a zona estuarina, a zona costeira, as barras e lagunas do sul da foz; a básica navegação fluvial, um direito intrínseco de mobilidade para a sociedade da região; a essencial paisagem perdida e, naturalmente, as populações difusas que desde a violenta redução das vazões defluentes abaixo de 1.300 m³/s (hum mil e trezentos metros cúbicos por segundo) definidos pelo Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco), deixando a conotação de que [a proposta] submete à cavilosa resolução ANA 2081/2017, que garante, ao setor elétrico, a vazão mínima de 700 m³/s.

Foi perdida uma grande oportunidade de fato inovador, ousado, de um ponto de mutação radical pela vida no São Francisco.

O GRH cita ainda que:

“A importância das cheias: A elevação do nível da água tem papel decisivo, e um conjunto de fatores atua como gatilho para o desenvolvimento gonadal: precipitações pluviométricas, o aumento da temperatura e do fotoperíodo.

Os cenários previstos pela proposta do GRH da UFBA. Fonte: GRH/UFBA

Após a desova, os ovos derivam rio abaixo enquanto se desenvolvem, sendo lançados, geralmente na forma de larvas, para as depressões laterais (várzea) durante o transbordamento da calha (1);

Nessas depressões laterais (lagoas marginais, lagos, canais), as larvas e alevinos encontram condições ideais para o desenvolvimento inicial (alimento, temperatura e oxigênio) e abrigo que os protegem da predação (2);

Com a retração da água durante a vazante, esses jovens concentram-se em corpos de água remanescentes na várzea ou são levados para a calha principal podendo procurar os acessos às baias e lagoas. Os jovens permanecem nesses ambientes por um tempo variável, conforme a espécie considerada (3)…”

Após uma leitura mais atenta do Estudo do GRH, observamos que:

a) Não foram encontrados esclarecimentos de como seria resolvida a provocação de turbidez de sedimentos na água. Esta referência se faz necessária pois, quando nas cheias naturais, a chamada “água nova, água toldada” estava relacionada, por razões da biologia das inúmeras espécies com reprodução no verão (no Baixo), ao evento conhecido popularmente como a “parição dos peixes”, ou seja a aparição, o aparecimento dos peixes “batendo” na água suja (de lama, de sedimentos em suspensão). No presente, apenas durante chuvas torrenciais de verão, que provocam a volta das águas em rios intermitentes, carreando os sedimentos suspensos (praticamente inexistentes no São Francisco, posto que retidos pelos barramentos) podemos observar o rio com suas águas barrentas.

b) Não se verifica, na proposta, a necessária, profunda e urgente atenção sobre o [já muito longo] quadro de infestação de algas verdes que permanece no presente [mesmo com algum incremento da vazão, insuficiente para uma limpeza biológica dos organismos]. O leito do rio (e em particular as zonas próximas da borda de transição água/terra firme/zona ripária) permanece recoberto de densa e espessa camada de vegetação aquática (população majoritária de Elodea) morta (nas zonas mais rasas, ainda viva, porém em ciclo de morte e decomposição permanente) fornecendo nutrientes que potencializam (adicionados aos já presentes efluentes de esgotos e agrotóxicos) a robustez dos sistemas de organismos invasores. Não há possibilidade da massa de algas verdes em suspensão e a camada de vegetação invasora serem eliminadas  com o  vazões como da ordem de 2.000 m³ atuais (o que é comprovado in loco). A falta de turbidez na água, encontrada em rios sem barramentos, seria uma condição como barreira a  dificultar a fotossíntese dos organismos.

c) Não é considerada a existência de extensas áreas de população vegetal invasora (arbustivas, arbóreas e outras) no leito secado do rio que produziu uma massa vegetal monumental, em todo o Baixo São Francisco que, neste momento, está parcialmente alagada (a vazão da ordem de 1.900 m³/s não é capaz de real “transbordamento adentrando a planície de inundação), morrendo e produzindo nutrientes incompatíveis com um estado natural de rio saudável, potencializando (e sendo adicionados à já comprovada existência de inúmeros produtos como agrotóxicos, efluentes de esgotos) a proliferação organismos invasores e comprometendo o acesso à água adequada para a população difusa – sem sistemas de abastecimento e tratamento de água. A vegetação, para ser eliminada apenas com o alagamento, careceria de vazões maiores e por tempo muito maior.

d) A descaracterização/perda e uma possível e perigosa reconfiguração da memória das cheias naturais ao nomear uma vazão da ordem de 3.000/3.500 m³/s por um período mínimo de cinco/dez dias como uma cheia (o itálico é nosso) devendo ser considerada que no presente uma grande parte da população do Baixo São Francisco já nasceu com o mesmo regularizado (pós UHE Sobradinho, citando que ocorreu um evento extremo logo após o início das operações) na faixa de 2.060 m³/s. De fato, há a recorrência de comentários por parte de pessoas mais jovens que observando (sem o conhecimento das vazões históricas, seja como experiência de vida ou aprendizado a partir de informações disponíveis) o rio nos dias deste outubro como: “rapaz, o rio encheu…”; “é cheia mesmo, deixou os bar tudo debaixo d’água…”;

e) A desconsideração sobre a questão – não solucionada até o presente – do grande número de ocupações e usos irregulares sobre o leito secado (além da chamada planície de inundação) que neste momento se encontram alagadas em inúmeras “orlas”, “prainhas”, “pontos turísticos” além de áreas particulares, abandonadas, produzindo material poluente, contaminante e depreciativo da paisagem, em ambas as margens (e carreado de rio abaixo) criando situação de risco de uso de água para milhares de pessoas do grupo das populações difusas e sem sistemas de captação e tratamento de água (5).

f) Não foram apresentadas poligonais, de Xingó até a foz, dos espelhos d’água para as simulações dos mesmos de acordo com cada valor de vazão mostrando, de forma clara, para toda a sociedade o comportamento do rio sobre (se é que avançará de forma significativa) a planície de inundação como o objetivo de demarcação da área afetada pela cheia anunciada.

g) São encontradas apenas breves menções (sem cartografia explicativa associada às poligonais citadas acima) sobre as insubstituíveis várzeas e lagoas marginais – estas, corpos d’água secados há anos, mal ocupados e utilizados, quando não atendendo a expansões urbanas, que tinham serviço ambiental e de produtoras de biodiversidade da ictiofauna essenciais (como a tão falada lagoa de Itaparica, no Médio São Francisco) – sem sua inserção na proposta, posto que as vazões definidas em qualquer cenário mal lamberão as barras e portas d’água e pelo curtíssimo tempo, ainda que adentrassem algo, muito provavelmente não proporcionariam o tempo de enchimento, espera e esvaziamento, ciclo ao qual inúmeras espécies são dependentes;

A lagoa marginal abaixo do Bonsucesso. Há dezenas de anos sem desempenhar seu serviço ambiental ou produzir alimentos. A seta indica o ponto de vista da foto abaixo. Intervenção InfoSãoFrancisco sobre imagem Google Earth
A porta d’´água da lagoa abaixo do Bonsucesso em 08 de outubro 2020. As vazões propostas não “lamberão” as soleiras. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | InfoSãoFrancisco

h) Não foi observada menção ao Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco que não é citado uma única vez na proposta – seja no texto ou nas referências bibliográficas)que estabelece como vazão mínima 1.300 m³/s (documento diretor realizado ao custo da ordem de R$6.000.000,00 – seis milhões de reais) indicando que a gestão das águas está definitivamente dominada pelo setor elétrico que há anos definia a vazão mínima de 700 m³/s como a mais confortável.

Uma fake cheia?

Como não é apresentada a explicação de que vazões da ordem de 2.000 m³/s não são cheias, mas apenas tão somente a defluência determinada quando da construção da UHE Sobradinho (2.060 m³/s em 1979) cria-se uma situação de desinformação no grande público.

Observar ainda que, desde o início de outubro, a CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco vem operando com vazões da ordem (e acima) de 2.000 m³/s, conforme os quadros abaixo.






Os quadros com as vazões de Xingó (CHESF) são apresentados para mostrar que as vazões da faixa de 2.000 m³/s são patamares  condizentes com o período anterior a 2013 (redução das vazões), seguindo a vazão determinada a partir da construção de Sobradinho, sem qualquer configuração de “cheia”.

O modelo apresentado – de forma não muito clara, sem  justificativas explicativas – determina a redução da vazão em janeiro de 2021 para 1.300 m³/s (algo que pode ser considerado bizarro, para um período em que o rio normalmente estaria com volumes de água muito superiores, piorando o quadro durante um mês, beneficiando unicamente o setor elétrico que irá, como de regra, acumular mais água), anteriormente aos tais pulsos de dez dias (ou cinco mais cinco dias) com a as vazões da ordem de 2.000 m³/s.

Também não há explicações em como seriam as vazões “pós-pulso”, informação de grande relevância.

O pulso máximo apresentado (cenário 5) de 3.500 m³/s durante meros cinco dias deve ser observado como um valor de pouco mais de 69% dos 2.060 m³/s previamente citados e dentro do potencial de defluências turbinadas da UHE Xingó (são seis máquinas, cada qual demandando aproximadamente 500 m³/s para operação plena, logo, 3.000 m³/s.

Apois. Seria, de fato, vazão digna da nomenclatura “cheia”, ou poderíamos classificar como uma fake cheia?

O povo mais velho detentor da memória do rio livre, aquele, que viu o Velho Chico botar suas águas doces mar adentro, as lagoas esbrangindo água, que de fato ainda sabe onde o rio batia, com certeza não morderá a isca d na “prosazinha à toa, conversinha fraca”, de uma “aguinha” a mais, num tempinho miudo.

Notas da redação:

1– algo que, com as vazões propostas, deve ser devidamente comprovado com o fornecimento das poligonais da lâmina d’água de cada vazão prevista.

2– vale a nota 1 acima. Com o devido conhecimento das lagoas marginais existentes nas margens do Baixo São Francisco, permanecem consistentes dúvidas sobre como as vazões propostas pelo estudo atingiriam aquelas e qual o volume.

3– as várzeas, em número bem menor do que as lagoas, e, como estas, com a regularização se encontram fortemente atrofiadas, com incrementos de área molhada na estação de inverno no Baixo, em oposição ao período pré Sobradinho, comprovando a inversão do ciclo hidrológico imposto ao São Francisco. Valem as observações apresentadas na nota 1.

4– Na listagem das espécies de peixes são elencadas espécies de peixes para o passado em número muito pouco expressivo quando se há relatos de considerável maior diversidade. Inclusive há uma duplicidade  relativa ao dourado (Salminus brasiliensis): a tubarana, na listagem, é o mesmo peixe. Não são mencionados crustáceos, moluscos (e como seriam beneficiados com os pulsos).

5- As observações do item são pertinentes para qualquer situação de vazão, devendo ser incluídos os locais de acúmulo de resíduos sólidos de toda a espécie em todo o Baixo São Francisco. Seja em caso de eventos extremos naturais (que excedam as vazões de restrição por incapacidade de retenção dos reservatórios) ou operações de maior defluência programada, como é o caso da proposta, o leito secado do rio e as zonas ripária e das planícies de inundação já deveriam ter sido desocupados há tempos.

Acesse/descarregue o Estudo do GRH/UFBA na íntegra


Veja ainda

Vazões de Xingó: precisamos de informações precisas (a qualquer momento)

Água dominada: 700 m³/s, vazão meta do setor elétrico 

Ainda existe água no São Francisco

Quem pilota os destinos desse rio


Fontes

CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco

GRH – Grupo de Recursos Hídricos – UFBA

ANA – Agência Nacional de Águas


Imagem em destaque – Leito do rio ocupado em Pão de Açúcar, no dia 08 de outubro de 2020, vazões da ordem de 2.000 m³/s. Dentro do padrão a partir da regularização pós Sobradinho. Foto: Carlos E. Ribeiro Jr. | InfoSãoFrancisco

Sobre o autor

Carlos Eduardo Ribeiro Junior

Co-criador do InfoSãoFrancisco e coordenador do projeto.