por InfoSãoFrancisco
O MapSãoFrancisco dá partida em seus projetos na bacia do Velho Chico com o mapeamento colaborativo de lagoas e várzeas marginais no Baixo São Francisco que já conta com uma ampla rede de mapeadores espalhada por diversos países.
Lançado há poucos dias, o MapSãoFrancisco não perde tempo e já está em campo com seu primeiro projeto de mapeamento colaborativo na bacia hidrográfica do rio São Francisco, começando com a região do trecho baixo do rio.
O Mapeamento das Lagoas e Várzeas do Baixo São Francisco vai para o campo tendo como alvo as esquecidas, mas sempre existentes, lagoas e várzeas marginais que, apesar de sua capital importância (ver quadro no final da matéria), não estão representadas adequadamente ou simplesmente não constam na cartografia oficial, o que compromete a elaboração e aplicação políticas públicas regionais de cunho socioambiental.
A área de mapeamento da iniciativa tem cerca de 1.074,772 km2 e é classificada, pelo projeto, como em situação de “precariedade cartográfica”, situação que, no entanto, e ainda de acordo com o MapSãoFrancisco “é aceita pela sociedade através de seus entes do sistema de gestão da ocupação e usos do território: governos municipais, dos estados de Alagoas e Sergipe e União, o que estabeleceria a negação dos direitos do rio São Francisco, seus ecossistemas e suas populações”.
Professor do curso de Engenharia de Pesca da UFAL – Universidade Federal de Alagoas, parceira do projeto, Igor da Mata Oliveira entende que nos últimos anos, têm se observado uma perda da informação fundamental sobre as lagoas marginais do Baixo São Francisco. “Esses ambientes vêm sendo gradativamente esquecidos nos levantamentos cartográficos oficiais ao longo das últimas décadas, como se simplesmente não existissem mais. Destaca-se que as lagoas marginais são patrimônio da União, a qual atualmente desconhece completamente sua quantidade e extensão”, acrescenta Igor.
Prosseguindo, Igor percebe que “a situação é extremamente preocupante, pois a gradativa perda das informações da condição passada do rio nos impede de realizar uma avaliação dos cenários ao longo do tempo e das suas reais necessidades de manutenção. Com isso, passa-se a considerar como parâmetro uma condição mais recente e degradada, fazendo com que as metas de gestão sejam cada vez mais distantes do equilíbrio necessário entre os diversos usos e interesses do ambiente.”
Foi para contrapor essa precária representação cartográfica e de informações que o MapSãoFrancisco, em prosseguimento à cooperação estabelecida com o HOT – Humanitarian OpenStreetMap Team e com a UFAL – Universidade Federal de Alagoas, através de seu curso de engenharia de pesca em Penedo, desenvolveu o projeto Mapeamento de Lagoas e Várzeas do Baixo São Francisco.
Mapas sem lagoas
O vazio das lagoas nos mapas oficiais é o principal desafio da empreitada, pois “é uma situação que é verificada não apenas em mapas federais mas também naqueles produzidos pelos estados de Sergipe e Alagoas, colocando em risco qualquer discussão adequada sobre o futuro do São Francisco”, afirma Carlos Eduardo, que completa expondo que “pela situação de real risco do fim do Velho Chico como um rio de fato, o MapSãoFrancisco estabeleceu o mapeamento das lagoas e várzeas com altamente prioritário, uma vez que não conhecemos ação similar por parte das gestões das águas e território da bacia hidrográfica”.
De fato, as cartografias oficiais disponíveis em sítios como os da ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e do CBHSF – Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco tampouco têm publicados mapas específicos sobre o tema ou mesmo digitais que contenham camadas com os elementos lagoas e várzeas marginais.
Seguindo a regra, o SPU - Serviço do Patrimônio da União, que por lei é o gestor das terras de domínio da União ao longo do Velho Chico, nas quais estariam as lagoas e várzeas, também não apresenta qualquer base cartográfica pública, por mais rudimentar, de tão importante território coletivo, contribuindo para a precária gestão do mesmo(ver box ao final da matéria).
Por que mapear lagoas e várzeas no Baixo São Francisco?
O MapSãoFrancisco estabeleceu o projeto de mapeamento das lagoas e várzeas é considerado como de alta prioridade pois há que as inserir, novamente, e de forma precisa, independente das ocupações e usos atuais, na cartografia oficial.
Esta, desde a regularização, vem gradativamente declinando da representação adequada dos corpos hídricos, ou ainda simplesmente optando pela eliminação em cartografias atualizadas. As lagoas e várzeas do rio São Francisco, integrantes de sua planície de inundação, também “são rio”, pois estariam inseridas na chamada Linha Média das Enchentes Ordinárias (LMEO), em acordo com o definido pelo SPU – Serviço do Patrimônio da União, órgão que aparentemente ignora a gravidade do problema.
Os idealizadores do projeto explicam que o mesmo pois terá como produto uma das camadas básicas da cartografia que abordará o passivo socioambiental da região após mais de quarenta anos de regularização.
A priorização destes corpos d’água está, também, vinculada à relação das lagoas no quesito segurança física e patrimonial das populações difusas e urbanas espalhadas ao longo do Baixo São Francisco.
Estará em foco amplo a questão dos usos e ocupações do território, que contará com o mapeamento de elementos produzidos pelas políticas públicas relacionadas ao que o MapSãoFrancisco entende como uma “temerária gestão das águas do rio” por não proteger e conservar as lagoas e várzeas da forma adequada.
Em caso de cheias, as lagoas e várzeas, agindo em harmonia com o canal fluvial teriam o papel de algo como “volume de amortecimento” para receber a água, no segundo estágio do processo de transbordamento do rio, imediatamente após o enchimento da calha principal. Até antes da regularização, com as cheias anuais, o canal fluvial era mais profundo e podia conter mais água.
Não é o caso do baixo São Francisco do presente: com a calha completamente atrofiada, assoreada, sem o já citado “volume de amortecimento”. Um evento de vazões de grande volume no presente, em um rio sem capacidade de conter a água, produziria um cenário de extrema gravidade para o qual a União, os estados de Alagoas e Sergipe e os municípios não contam com qualquer plano de emergência.
Paisagens sem herdeiros, presente sem conhecimento do passado, futuro incerto
Segundo Carlos Eduardo Ribeiro Jr., da Canoa de Tolda, uma das idealizadoras do projeto, “a grosso modo e equivocadamente, as lagoas passaram à condição de “não existência” pelo fato de não mais receberem as águas do Velho Chico, como há quarenta anos atrás no período das cheias naturais. Uma boa parte da população no Baixo, senão a maioria, nunca as viu com água, não herdou a memória de seus pais e avós, das dezenas de massas d’água ao longo das margens, cheias, produzindo vida, alimento, paisagem saudável, mantendo um pujante sistema socioeconômico vazanteiro”.
“Ainda que próximas de muitos povoados, ao alcance da vista das populações, o desconhecimento, ou a não-percepção das lagoas como lagoas, como território a ser preservado grande cuidado, perpetua um cenário que não favorece a preservação do Velho Chico pois não são conhecidas cobranças da sociedade pela urgente conservação e proteção dos importantes corpos hídricos”, conclui Carlos Eduardo.
Perspectivas
Para os idealizadores do MapSãoFrancisco é esperado que em poucos meses já se tenha bons resultados, em razão da boa velocidade com que as diversas áreas, organizadas pelo sistema disponibilizado pelo HOT, o Tasking Manager, estão sendo mapeadas, validadas e publicadas.
Desde seu lançamento operacional, há poucos dias, o projeto demonstra já conta com inúmeras pessoas mapeadoras não só no Brasil, mas também de diversas outras partes do mundo. É uma visível convergência de interesse colaborativo e executivo mostrando o poder dessa imensa comunidade global de mapeadores voluntários organizada pelo HOT e orientada para os inúmeros projetos listados na plataforma da organização.
O mapeamento colaborativo pela plataforma OSM – OpenStreetMap tem a característica básica de apresentar resultado imediato: ao inserir um elemento no mapa, uma vez finalizado e validado, ele passa a ser público imediatamente e disponível inclusive em bases cartográficas online de órgãos governamentais.
O elemento mapeado passa a “existir”, oficialmente, de uma vez por todas, completando seu justo e devido lugar no vazio cartográfico formal.
Estão previstas atividades de campo, tão logo seja possível, para a conferência das poligonais realizadas remotamente, diagnóstico das lagoas e coleta de depoimentos de pessoas que, há mais de quarenta anos atrás, tiveram a oportunidade de ver as lagoas cheias com as águas do São Francisco.
Como colaborar no mapeamento das lagoas e várzeas
Para participar do projeto do MapSãoFrancisco é necessário que a pessoa tenha uma conta no OSM - OpenStreetMap.
Em seguida, ela fará seu primeiro acesso na plataforma Tasking Manager do HOT que identificará sua conta/usuário.
Ali serão encontradas todas as informações inclusive de vídeos de treinamento que contam com tradução instantânea para o português.
Para a seleção das áreas do projeto que poderão ser mapeadas, o acesso poderá ser feito tanto pelo MapSãoFrancisco como pelo Tasking Manager.
Todos os projetos do MapSãoFrancisco estão em português.
Entendendo melhor as lagoas e várzeas marginais no Baixo São Francisco
Elementos geológicos que ocorrem com frequência em rios que contam com planícies de inundação em sua bacia sedimentar, as lagoas e várzeas marginais desempenham importantes funções relacionadas à biodiversidade dos ecossistemas aquáticos e também na dinâmica hidrológica dos rios, pois recebem as águas nos períodos das cheias cíclicas.
Há ainda a questão legal referente aos usos e ocupações irregulares das lagoas e várzeas.
As lagoas marginais são territórios de domínio da União
É importante lembrar que as lagoas e várzeas são áreas de domínio da União, assim como o rio São Francisco.
Como estabelecido pelo Decreto-Lei nº 9.760, de 1946, “terrenos marginais são aqueles banhados pelos rios, lagos ou quaisquer correntes de águas federais e fora do alcance das marés (porque se há influência de marés, o terreno caracteriza-se como Terreno de Marinha, também de domínio da União).
Lagoas e várzeas: essenciais para a vida aquática e das margens
A biodiversidade dos ecossistemas aquáticos e ripários é garantida pelas lagoas pois nelas é que ocorre (assim como na zona estuarina da foz, com seus manguezais e apicuns) a reprodução da maior parte da ictiofauna. No Baixo São Francisco , até antes da regularização, com a construção da UHE Sobradinho (1979/80) no Submédio São Francisco, as lagoas e várzeas eram inundadas em período cíclico ocorrendo entre outubro, novembro a março do ano seguinte.
Com o grande barramento, as cheias foram eliminadas, a vazão foi regularizada no patamar de 2.060 m³/s (dois mil e sessenta metros cúbicos por segundo) e as lagoas e várzeas nunca mais foram inundadas pelas essenciais águas do rio. A biodiversidade foi, desde então, gravemente comprometida, situação agravada pela predação dos remanescentes da biota.
“As lagoas marginais de sistemas de rio-planície de inundação são ambientes fundamentais para manutenção dos ecossistemas fluviais relacionados. São amplamente reconhecidas pela sua importância na manutenção e integridade da biodiversidade, como criadouros naturais das espécies de importância comercial e no fluxo de nutrientes e sedimentos para o todo o curso principal do rio.”, explica Igor da Mata Oliveira, professor do curso de engenharia de pesca da UFAL – Universidade Federal de Alagoas, parceira técnica do MapSãoFrancisco e do projeto de mapeamento das lagoas.
Indo mais além, Igor cita a gravidade da situação no rio São Francisco, “que com os barramentos e diminuição das vazões, não são mais observadas as cheias naturais, resultando numa total perda de conexão com as lagoas. Dessa forma, é observado um longo e intenso processo de perda desses ambientes, o que certamente causa um impacto profundo na reposição de espécies nativas importantes para a pesca, que não contam mais com esses ambientes para reprodução e desenvolvimento nos seus estágios de vida iniciais. Além disso, um considerável contingente de pescadores utilizava esses ambientes diretamente para a atividade pesqueira, explorando as espécies de peixes sedentárias e de pequeno porte para subsistência”.
Também na dinâmica do rio, indispensáveis elementos
Quanto à dinâmica hidrológica, esta também é relacionada ao período das cheias cíclicas anteriores à regularização. No presente, temos um rio inteiramente controlado pela mão do homem, que priorizou agressivamente o uso das águas para a geração de energia e a agricultura irrigada. Os ciclos naturais foram extintos, há mais de quarenta anos que as lagoas não mais recebem água.
Nas cheias do rio corria livre havia o aumento das vazões, enchendo inicialmente a calha principal e, quando ocorria o transbordamento, ocupavam as lagoas e várzeas.
Também por esta razão essas zonas não podem, de modo algum, ter ocupações e usos que comprometam a movimentação livre das águas. As lagoas devem estar prontas para cumprir suas funções de “volume de amortecimento secundário” além da capacidade da calha principal.
Com a regularização e o declínio gradativo das vazões do Velho Chico, sobretudo a partir de 2013, as pessoas ocuparam – e prosseguem ocupando – de diversas formas, inclusive com edificações, zonas de lagoas e várzeas ao longo das margens de Alagoas e Sergipe. Mas, sem exercer a devida fiscalização, prefeituras, estados e o governo federal fazem vista grossa a um problema que só tende a crescer e constituir em graves conflitos a curto prazo.
Em caso de uma situação de evento de enchentes, um risco real e que pode ter proporções inesperadas em razão da crise climática, sem as lagoas prontas a receber água, desocupadas o Baixo São Francisco poderia ser o cenário de um grande desastre para as populações ribeirinhas.
Leia ainda
MapSãoFrancisco: por uma cartografia colaborativa e inclusiva para o Velho Chico
Canoa de Tolda se une ao HOT e planeja mapeamentos da bacia do rio São Francisco
Redução de vazão do São Francisco em nova Licença de Operação da UHE Xingó ausente da mídia
Fontes: Canoa de Tolda; HOT - Humanitarian OpenStreetMap Team; MapSãoFrancisco