por Diana Aguiar, Joice Bonfim, Sabrina Felipe | Le Monde Diplomatique Brasil

Em julgamento histórico, tribunal de opinião analisará 15 casos em que ecocídio do Cerrado acontece de forma sistemática no espaço e no tempo.


O fim do Cerrado não é uma projeção: ele já está em curso. Caso nada seja feito para reverter a destruição dessa região ecológica, sua extinção é iminente e fruto de um crime, o ecocídio, cometido de forma sistemática pelo Estado brasileiro há meio século, com responsabilidade compartilhada por empresas privadas – nacionais e estrangeiras –, fundos de pensão e investimento e agentes estatais do Brasil e exterior interessados em explorar suas terras com o monocultivo da soja e outras commodities.

Atrelado ao crime de ecocídio do Cerrado há outro: o genocídio cultural dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais que dependem desta savana para sua reprodução social.

E para julgar os responsáveis por essa situação, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, articulação formada por 50 movimentos e organizações sociais, lançará dia 10/09 o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado. Criado na Itália há 45 anos com o objetivo de dar visibilidade e amplitude às vozes de povos vítimas de violações, o Tribunal acusará Estados e empresas pelo crime de ecocídio.

Os nomes dos acusados serão revelados durante o lançamento, assim como os 15 casos de violações contra povos e territórios da Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Piauí e Tocantins que fundamentam a acusação.

UM CRIME SUSTENTADO NO TEMPO E NO ESPAÇO

Nos últimos anos, a discussão sobre a tipificação do crime de ecocídio vem sendo alimentada com mais ênfase pela urgência em frear devastações e violências cada vez maiores contra povos e territórios. Em junho desse ano, um painel de 12 juristas apresentou uma definição do crime de ecocídio para ser incorporada ao Estatuto de Roma, que orienta a atuação do Tribunal Penal Internacional (TPI), responsável por julgar indivíduos que cometem crimes graves com impacto internacional.

“Para os efeitos do presente Estatuto, entender-se-á por ecocídio qualquer ato ilícito ou arbitrário perpetrado com consciência de que existem grandes probabilidades de que cause danos graves que sejam extensos ou duradouros ao meio ambiente”, diz a definição apresentada. A incorporação da definição ao Estatuto de Roma depende da aprovação dos países signatários do tratado.

Com definição mais abrangente, e permitindo a responsabilização de Estados e empresas (e não somente de indivíduos, como o TPI), o crime de ecocídio foi incorporado ao estatuto do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em 2018 como sendo “o dano grave, a destruição ou a perda de um ou mais ecossistemas em um território determinado, seja por causas humanas ou por outras causas, cujo impacto provoca uma severa diminuição dos benefícios ambientais dos quais gozavam os habitantes do referido território.”

Na peça de acusação entregue ao TPP, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado reitera a tipificação dada pelo próprio Tribunal, pois estabelece as dimensões temporal e geográfica do crime, revelando o caráter sistemático da devastação. “Não se trata de buscar o ecocídio em casos específicos – embora estes sejam sua expressão mais concreta –, mas de compreender, a partir dos casos representativos (…) e das análises para o conjunto do Cerrado, a sistematicidade geográfica (em todo o Cerrado) e temporal (no último meio século) do crime de ecocídio do Cerrado”, afirma trecho da peça acusatória.

A acusação avança em relação à tipificação do crime feita pelo TPP ao demonstrar que os efeitos do ecocídio não se dão apenas sobre os territórios, mas sobre os povos que com eles se co-constituem. Se há o ecocídio do Cerrado, sustenta a Campanha, também há o genocídio cultural de seus povos.

“Entendemos que a co-constituição povos-natureza implica em que ‘o dano grave, destruição ou perda’ de ecossistemas não representa somente a ‘severa diminuição de benefícios ambientais’ dos ‘habitantes de tal território’. Mas vai além, representando uma ameaça à própria condição de reprodução social e permanência dos povos do Cerrado como povos culturalmente diferenciados”, diz a peça de acusação.

Grandeando área de cultivo dentro do Condomínio Cachoeira do Estrondo – Formosa do Rio Preto (BA). Foto: Thomas Bauer/CPT


EXTINTO O CERRADO, EXTINTO O BERÇO DAS ÁGUAS

Segundo dados divulgados em junho desse ano pelo MapBiomas Alerta, o Cerrado respondeu por quase um terço de toda a área desmatada no Brasil em 2020. Naquele ano foram devastados 13.853 quilômetros quadrados, dos quais 4.321,83 em área de Cerrado, um aumento de quase 6% em relação ao ano anterior.

Considerado a savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado chega a constituir cerca de 5% da biodiversidade do planeta. Esta região ecológica começou a se formar há pelo menos 65 milhões de anos e a se concretizar há 40 milhões, sendo o mais antigo ambiente da história recente da Terra.

Dele dependem todas as outras regiões ecológicas, já que o Cerrado é berço de alguns dos mais importantes rios do Brasil e da América Latina. Sob o Cerrado se encontram os dois principais aquíferos do país, o Guarani e o Urucuia-Bambuí. No Cerrado nascem o rio Paraguai e seus formadores, como o Cuiabá, o São Lourenço e o Taquari. Nascem, ainda, o rio Paraná e seus formadores, como o Paranaíba.

No Cerrado também nascem o rio São Francisco, o rio Doce, o Jequitinhonha, o Parnaíba e o Itapecuru, além de vários formadores da margem direita da bacia amazônica, como os rios Tocantins, Araguaia, Tapajós, Xingu e vários afluentes do rio Madeira. Esses afluentes contribuem com os maiores volumes de água na alimentação do rio Amazonas, e também são os responsáveis pela sua regularidade e perenização.

As duas maiores extensões de terras continentais alagadas do planeta – o Pantanal e os “varjões” do Araguaia – têm sua dinâmica hidrológica relacionada aos Cerrados e suas chapadas. A extinção do Cerrado significaria, portanto, a extinção do berço das águas e, por extensão, a afetação de outras regiões ecológicas.

Vale onde localiza-se a nascente do Rio Preto cercado pelos monocultivos o novos desmatamentos. Foto: Thomas Bauer/ CPT

A INVENÇÃO DO VAZIO

O debate mais intenso sobre a definição e incorporação do crime de ecocídio a códigos jurídicos nacionais e internacionais é recente, mas a existência material do crime, pelo menos no caso do Cerrado, remonta a cinco décadas.

A invenção do Cerrado como um vazio demográfico, como “terra de ninguém”, é uma estratégia narrativa, estruturada a partir de bases racistas e coloniais, utilizada historicamente pelo Estado brasileiro e sobretudo desde o início do século XX para encorajar a apropriação e exploração ilimitada desses espaços.

“Muitas ações organizadas pelo Estado brasileiro ao longo do século XX foram no sentido de viabilizar a ocupação dos sertões, como a Marcha para o Oeste do governo de Getúlio Vargas na década de 1940, a mudança da capital federal para o Planalto Central com a fundação de Brasília em 1960 e a abertura de estradas para conectar a nova capital no Cerrado com capitais de estados na Amazônia (Belém-Brasília e BR-364 / Brasília-Porto Velho) nas décadas de 1950 e 60”, informa a peça de acusação entregue ao TPP.

Contudo, foi nos anos 1970, com o Programa de Integração Nacional (PIN) da Ditadura Empresarial-Militar (1964-85), que o processo do crime de ecocídio se fortaleceu sobre o Cerrado, gerando uma devastação sem precedentes.

Para expandir a fronteira agrícola e promover a tropicalização da soja (originária de zonas temperadas) os governos militares abriram novas estradas (BR-163 – Cuiabá-Santarém e Transamazônica) e promoveram o cercamento e a privatização de terras devolutas e de ocupação tradicional por meio de projetos de colonização. Um dos eixos dessa tropicalização da soja foi a criação da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), em 1973, e do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer), que funcionou entre 1979 e 2001. Estas foram as bases para a expansão acelerada do monocultivo da soja no Cerrado a partir dos anos 1990 e 2000.

Não por acaso, o atual governo federal, ideologicamente fascista e que opera tendo como horizonte estratégias do passado ditatorial, tem priorizado a implementação de projetos de infraestrutura para favorecer a produção e escoamento de grãos, além da extração e exportação mineral, à custa da devastação ambiental e da violação de direitos de povos originários e tradicionais.

O ESTADO SOB JULGAMENTO

A participação estatal é marcante no crime de ecocídio contra o Cerrado, segundo aponta a acusação feita pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado ao TPP. Tanto no passado como agora, empresas privadas do Brasil e exterior contam com fundamental apoio do poder público para usurpar e devastar terras dentro de uma suposta legalidade.

Exemplo recente da dobradinha poder público-setor privado veio do governo baiano, que concedeu à empresa Delfin Rio S/A Crédito Imobiliário uma Autorização de Supressão de Vegetação (ASV) de 24.732 hectares de vegetação nativa do Cerrado, no interior do “Condomínio Cachoeira do Estrondo”, no município de Formosa do Rio Preto. O caso, segundo a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia, figura como uma das maiores supressões em curso no Brasil. Até o dia 17 de agosto já haviam sido desmatados cerca de 3 mil hectares.

Em carta assinada por diversas organizações pedindo ao governo baiano a revogação da ASV, foi denunciada a ilegalidade da autorização concedida à empresa, uma vez que a área desmatada pertence ao território tradicional de comunidades geraizeiras no alto Rio Preto, cuja posse foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em 30 de junho desse ano.

“A empresa Delfin Rio S/A Crédito Imobiliário, suposta proprietária de 97.000 hectares, sobrepõe, ilegalmente, a sua Reserva Legal obrigatória aos territórios tradicionais das comunidades geraizeiras no alto Rio Preto. Como requerente da Autorização de Supressão de Vegetação Nativa – ASV, a empresa não tem domínio e posse sobre essas áreas declaradas como sua Reserva Legal. Ao contrário, a empresa comete um caso típico de grilagem verde, usurpando domínios alheios para fingir a regularidade ambiental de determinado imóvel”, diz a carta.

Grilagem, desmatamento, incêndios criminosos, correntão e ataques com armas de fogo são algumas das estratégias utilizadas pelos proprietários da Estrondo e de outras empresas do agronegócio, com apoio do poder público, para expulsar povos originários e tradicionais de seus territórios e se apropriar de suas terras.

Sob o poder do fogo, das máquinas e da violência humana, em poucos minutos o Cerrado vê tombar a riqueza e diversidade que a natureza levou milhões de anos para erguer e consolidar, e que os povos originários e tradicionais levaram outros milhares de anos para conservar e multiplicar.

Geraizeiro cuidando da criação de gado na comunidade. Foto: Thomas Bauer/ CPT

TRIBUNAL DOS POVOS: PRESSIONAR PARA EVOLUIR

Ao longo desse ano e do próximo, o Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado realizará audiências virtuais para discutir cada um dos 15 casos. Em novembro de 2022 acontecerá a audiência final deliberativa, em que será lida a sentença dada pelo júri.

Fazem parte do júri do TPP no Cerrado o espanhol Antoni Pigrau Solé, professor de direito internacional público; a jurista e ex-vice Procuradora Geral da República Deborah Duprat; o bispo da Diocese de Brejo (MA) Dom José Valdeci; a jornalista Eliane Brum; a socióloga venezuelana Rosa Acevedo Marin; a jornalista e pesquisadora uruguaia do Grupo ETC Silvia Ribeiro; a liderança indígena e coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil Sônia Guajajara; e a portuguesa Teresa Almeida Cravo, professora de relações internacionais. O jurista francês Philippe Texier também compõe o júri, e é o atual presidente do TPP. A vice-presidente é a deputada federal Luiza Erundina (PSOL).

Por se tratar de um tribunal de opinião, o TPP não tem mecanismos para fazer cumprir as sentenças proferidas. Ainda assim, as sentenças são de extrema importância para os sistemas de justiça nacionais e internacionais, e para a opinião pública de uma forma geral, uma vez que expõem os vazios e limites do sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos e, assim, pressionam para sua evolução.

Posicionamento da empresa Delfin Rio S/A

A Delfin Rio S/A informa que possui licença legal emitida pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) desde 2015, após seguir o trâmite de todas as etapas e estudos solicitados, tendo inclusive, recebido parecer favorável do Ministério Público da Bahia quanto à legalidade da emissão da licença pelo órgão ambiental, em 2018, quando houve questionamentos semelhantes por parte de terceiros. A ligação dos vales do Rio Preto e Rio Riachão continua mantida, já que a supressão ocorrerá em apenas uma parte da área da Chapada, com a preservação da vegetação integral dos vales.

Apesar de, por lei, poder suprimir até 80% da área em questão, a Delfin Rio S/A planeja suprimir 34,2% da área, portanto menos da metade da área permitida pelas autoridades competentes. O que aparece nas imagens são aberturas dos corredores para afugentamento da fauna, que estão sendo acompanhadas por uma equipe multidisciplinar obedecendo as condições da licença ambiental. É importante acrescentar que serão aplicadas todas as medidas mitigadoras e compensatórias previamente acordadas com os órgãos competentes.

Por fim, cabe destacar que a propriedade da empresa Delfin Rio S/A está legalmente constituída desde 1981, com registros no Cartório de Registro de Imóveis, Receita Federal, Incra e em cadastros ambientais.


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Fontes

MPF – SE

Canoa de Tolda – Sociedade Socioambiental do Baixo São Francisco

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis


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